A rapidez dos avanços da saúde digital e da inteligência artificial (IA) no campo das práticas profissionais de saúde (medicina, psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia etc.) e no campo da gestão da saúde pública e coletiva (Sistema Único de Saúde – SUS, sistema de saúde suplementar, por exemplo) atrapalha a compreensão do que está acontecendo e, consequentemente, torna mais difícil a organização de ações sociais e estatais para fazer frente aos riscos que tais avanços tecnológicos trazem aos seres humanos e à sociedade.
Biopoder e Biopolítica
Em “Segurança, território, população”, Foucault define biopoder como sendo “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral do poder”. O filósofo havia percebido que o Estado moderno estava se organizando para ter como uma de suas finalidades institucionais o cuidado da vida, do corpo, da saúde corporal, da relação entre as doenças e a saúde etc. O exercício do poder sobre o corpo e a vida do ser humano é uma das expressões mais evidentes do biopoder estatal dos Estados modernos.
Em “Microfísica do poder”, Foucault traz exemplos concretos dessa nova atuação estatal, sendo que no campo da saúde ele destaca a prática de uma “medicina de Estado”, que viria acompanhada de uma “polícia médica”. As dinâmicas de organização de uma política de saúde massificada e voltada à promoção de saúde e vida foram dissecadas pelo filósofo, e muito do que foi constatado sobre a forma como serviços de saúde se organizavam naquela época mantém-se atual, sendo que o controle que esses serviços exercem sobre os corpos e vidas dos pacientes mantinha-se como centro de suas análises.
O biopoder pode ser utilizado para fins políticos, sociais ou econômicos. Ele pode ser instrumento de Estado e também de outros atores sociais privados que exercem poder sobre corpos e vidas. A diferença é de escala e de finalidade. Por meio de diferentes mecanismos, o biopoder atua para a obtenção de corpos obedientes e saudáveis (medicalizados); corpos que, se for necessário, poderão ser punidos para que se emendem; corpos a serem disponibilizados à sociedade; corpos a serviço daqueles que exercitam e detém o biopoder. Quando manifestado como biopolíticas de Estado, pode agir para manter a vida ou para eliminá-la.
Podemos identificar o exercício do biopoder na forma de biopolítica na medida em que diversas políticas públicas de saúde, clássicas e fundamentais, têm os corpos e as vidas das pessoas como principal objetivo (em geral, espera-se, benéficos ao indivíduo e à sociedade). É o caso de políticas de saúde que organizam campanhas de vacinação, campanhas de prevenção de doenças, campanhas de educação em saúde, políticas de controle de epidemias, políticas de educação sexual e reprodutiva. São, regra geral, biopolíticas voltadas à proteção da saúde e da vida das pessoas.
Nem sempre a biopolítica organizada pelo Estado será benéfica e eficiente, embora continue a exercer o biopoder com rigor. São as biopolíticas nas quais o Estado, por meio de leis e políticas públicas, induz mortes de indivíduos ou grupos de indivíduos (por exemplo, com políticas de criminalização do uso de drogas e do aborto).
Ao mesmo tempo pode-se verificar modernamente a manifestação do exercício da biopolítica pelo campo privado, como é o caso do exercício do biopoder político-social praticado pelas indústrias de biotecnologia, farmacêuticas, pelas grandes empresas de alimentos (Nestlé, Anheuser-Busch InBeV, Mondelez) e, mais recentemente, pelas big techs (Google, Meta, Amazon). Esses atores sociais locais, nacionais ou globais, vão se configurando como dispositivos de exercício de biopoder, influenciando o corpo e a vida humana de forma radical, transformando subjetividades, produzindo saúde e doenças, modelando corpos, orientando tratamentos terapêuticos, induzindo comportamentos sexuais, direcionando desejos.
Biopoder e Biopolítica na Saúde Digital e na IA
A saúde digital e os usos da inteligência artificial no campo da saúde representam possibilidades disruptivas no exercício do biopoder e na construção de biopolíticas, tanto pelo Estado quanto pelos grupos privados. Essas novidades tecnológicas não estavam no horizonte de Michel Foucault quando ele elaborou suas teorias sobre biopoder e biopolítica. No entanto, é possível ver a atualidade de suas constatações com muito mais evidência hoje, já que a saúde digital e a IA são poderosos instrumentos para o exercício desse poder sobre a vida individual e coletiva.
Trata-se de uma grande transformação ocorrida nos tempos atuais: ao lado do Estado, o principal centro de biopoder, preocupação de Foucault, emergiu o biopoder dos grupos econômicos. A biopolítica passou a ser compartilhada pelo Estado com esses grandes grupos, de forma ainda bastante nebulosa e conflituosa.
Esta realidade já está batendo fortemente em nossa porta. Nos Estados Unidos, mais de 40 estados, incluindo a Califórnia e Nova York, entraram com um processo contra a Meta no final de outubro, acusando a empresa de usar intencionalmente recursos no Instagram e no Facebook para atrair crianças para suas plataformas e, dessa maneira, contribuírem para o declínio de sua saúde mental. Segundo consta do processo, “a Meta tem utilizado tecnologias poderosas e sem precedentes para atrair, envolver e, no fim das contas, prender os jovens e adolescentes. Seu motivo é o lucro, e ao buscar maximizar seus ganhos financeiros, a Meta enganou frequentemente o público a respeito dos significativos perigos de suas plataformas de mídia social. Ela ocultou a maneira como essas plataformas exploram e manipulam seus consumidores mais vulneráveis: adolescentes e crianças”.
A manipulação do comportamento humano por meio da saúde digital e do uso da IA aplicado à saúde está chegando a níveis alarmantes, sobretudo a praticada pelas grandes corporações privadas visando eminentemente interesses econômicos dos seus donos e acionistas.
É cada vez mais recorrente o aparecimento de notícias sobre o uso indevido de dados pessoais de saúde dos cidadãos, que estão armazenados em grandes bancos de dados públicos e privados. São dados como nome, endereço, CPF, prontuário médico, exames diagnósticos, registros de compras de medicamentos etc.
Estes dados pessoais estão quase todos disponíveis e devidamente “monetizados” por quem os coletou. Muitas vezes, essa coleta se dá de forma “legal”, porém, sem o conhecimento ou o consentimento verdadeiro e válido dos detentores dos dados. Afinal, todos clicamos no “aceito” para poder entrar no sistema e usufruir do serviço, sem saber ao certo o que estamos aceitando. Além dessa forma legal de publicizar as informações pessoais, há também os meios ilegais de acessá-las, por meio de comércio ilegal, vazamentos ou quebras de segurança de bancos de dados gigantes. A capacidade de fiscalização e controle do Estado sobre essa realidade ainda é muito pequena.
O uso de algoritmos e o cruzamento de dados entre diferentes bancos de dados, de diferentes empresas (planos de saúde, farmácias, softwares de saúde, compras on-line etc.) pode induzir pessoas a consumirem produtos médicos e de saúde de forma extremamente eficaz e com efeitos enormes sobre o corpo, a saúde e a vida, e com impactos importantes para a sociedade e a saúde pública.
De um lado, o exercício do biopoder pelo Estado democrático moderno deve ser aplicado para produzir saúde, bem-estar, longevidade e felicidade; deve ser aplicado com respeito aos direitos humanos de personalidade e às liberdades fundamentais. Deve equilibrar interesses coletivos da saúde pública com direitos e liberdades fundamentais. Nesse sentido, os usos das ferramentas da saúde digital e da IA devem ser pactuados democraticamente de forma ampla, transparente e participativa.
De outro lado, o exercício do biopoder pelos grupos econômicos privados deve ser aplicado em respeito às leis e de forma ética, buscando sempre o benefício dos indivíduos e grupos e nunca o malefício. Os interesses econômicos não podem e nem devem violar direitos e liberdades fundamentais dos seres humanos.
Somente a organização da sociedade contra os abusos que podem advir do uso da saúde digital e da IA poderá garantir a utilização adequada dessas tecnologias, que não degenere para o controle irresponsável de corpos e vidas, visando somente o lucro ou outros interesses privados sem preocupação com os direitos e liberdades dos cidadãos.
No Brasil, temos inovações institucionais, como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD e a Secretaria Nacional de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde – SEIDIGI-MS, que estão envolvidas com questões de saúde digital e IA. Também tramitam propostas de regulação do tema, como o Projeto de Lei 2338/2023. Temos que ficar atentos a essas iniciativas para garantir que o uso da saúde digital e da IA sirva para o exercício ético, responsável e transparente do biopoder e da biopolítica em sociedades cada vez mais massificadas.
Fonte: Jota Info