Plano Brasileiro de IA foi bem recebido, mas integração de sistemas, capacitação e infraestrutura são desafios

O plano foi bem recebido pelo setor, mas pode enfrentar desafios que ameaçam sua implementação

Em 2024, o ano deve mesmo ser marcado por avanços da inteligência artificial. Apesar de o Projeto de Lei 2.338/2023 ainda estar em tramitação no Senado, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) foi anunciado em 30 de julho durante a abertura da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5CNCTI). Com um investimento previsto de R$ 23 bilhões de 2024 a 2028, a proposta foi elaborada pelo Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT) em um documento de 83 páginas que abrange cinco eixos principais. Na área da saúde, o governo propõe usar inteligência artificial para desenvolver sistemas automatizados para gerenciar teleconsultas, realizar compras de medicamentos e acelerar diagnósticos. O anúncio gerou grande interesse no setor, especialmente pelas medidas de impacto imediato voltadas para aprimorar a eficiência e a qualidade do sistema público de saúde.

Renata Mielli, assessora da ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), disse que a proposta começou a ser desenhada em março, durante reunião do CCT, em uma discussão temática sobre inteligência artificial. Na ocasião, foram convidados alguns especialistas e, desde então, uma série de reuniões foi realizada com a sociedade civil, setor privado, academia, terceiro setor e órgãos governamentais, e essas reuniões interministeriais permitiram receber contribuições e iniciar a sistematização da proposta do plano.

“Procuramos criar uma política de Estado, não de governo. A continuidade focará em ações de curto, médio e longo prazo, com um orçamento previsto. O plano recebe recursos para impactar imediatamente a vida das pessoas, a ação do Estado e da sociedade, incluindo investimentos em infraestrutura e capacitação profissional. Com isso, esperamos desenvolver novas aplicações com autonomia nacional”, afirma Renata.

Dos R$ 23 bilhões previstos, R$ 435 milhões são para “ações de impacto imediato”. Em nota, o Ministério da Saúde revelou que 22% desse montante, equivalente a R$ 98 milhões, será destinado à saúde e visa impulsionar o desenvolvimento tecnológico e viabilizar ações de curto prazo. “É a primeira vez que o setor público de saúde recebe um aporte tão significativo para a aplicação em IA. Além desses recursos, outras fontes de financiamento também serão aplicadas no PBIA. O orçamento é suficiente para gerar novas tecnologias ao SUS e viabilizar condições que o setor público nunca teve. É preciso infraestrutura robusta, e o Ministério da Saúde vem se preparando para isso, com o apoio de parceiros do próprio Governo Federal, como o Ministério da Gestão e Inovação”, informou a nota.

Segundo especialistas entrevistados por Futuro da Saúde, dentre os principais desafios para a implementação do plano estão a necessidade de desenvolver uma infraestrutura tecnológica avançada, capacitar e requalificar profissionais rapidamente, e garantir a interoperabilidade e robustez dos dados para o treinamento das ferramentas de IA. No entanto, segundo eles, uma implementação bem-sucedida pode posicionar o Brasil como um líder no cenário. Para isso, será necessário um compromisso sustentável e um diálogo contínuo com todos os setores da sociedade.

Metas do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial para a saúde 

O documento compartilhado apresenta iniciativas em andamento ou previstas para o curto prazo, com foco em áreas prioritárias para a população. Na saúde, estão previstas medidas como o prontuário falado no SUS, o uso de IA para apoiar decisões sobre compras de medicamentos, a otimização dos diagnósticos, a aplicação de IA em saúde bucal e a detecção de anomalias em procedimentos hospitalares e ambulatoriais, dentre outras (veja ao fim da reportagem o detalhamento do plano para ações de impacto imediato na saúde).

Para Andreia Nunes, coordenadora do comitê de IA na Saúde da International Association of Artificial Intelligence (I2AI), um dos principais desafios será integrar efetivamente os sistemas de IA com a infraestrutura existente. Dada a complexidade do SUS, a implementação do prontuário falado exigirá não apenas uma reestruturação dos processos de trabalho, mas também uma mudança cultural significativa no setor da saúde: “Porém, essa necessidade de reestruturação, embora seja desafiadora, apresenta uma oportunidade única para modernizar e padronizar processos em todo sistema de saúde”, afirma.

Outro desafio será garantir a segurança dos dados dos pacientes, uma vez que a tecnologia exigirá o processamento de grandes volumes de informações sensíveis e precisa estar em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). E há ainda o desafio da formação dos profissionais. Nunes observa que a resistência a novas tecnologias, seja por falta de conhecimento ou preocupações com o impacto no trabalho, pode ser uma chance de melhorar até mesmo a formação médica. “Adicionar IA ao currículo médico não só preparará melhor os futuros profissionais, mas também pode trazer grandes avanços para a medicina e a tecnologia”, diz.

Um obstáculo também citado é a obtenção de dados para treinar a IA. No contexto brasileiro, onde muitos registros médicos ainda são físicos ou estão em sistemas incompatíveis, criar um conjunto de dados representativo e livre de vieses pode ser um obstáculo. E, além disso, a continuidade das ações dependerá da sustentabilidade financeira após o investimento inicial, especialmente considerando os desafios orçamentários do sistema de saúde brasileiro – a expectativa é que a manutenção e atualização dos sistemas de IA exigirão recursos significativos.

Para Andreia Nunes, essa dificuldade pode estimular a criação de modelos inovadores de financiamento e parcerias público-privadas no setor de saúde. Ela também aponta que, se as soluções de IA conseguirem reduzir custos, isso poderá resultar em investimentos contínuos e até na reorientação dos gastos em saúde para a prevenção precoce: “Embora os obstáculos sejam significativos, cada um deles representa uma oportunidade única para inovação e melhoria do SUS. O sucesso do plano não dependerá apenas da superação desses obstáculos, mas também da capacidade de transformá-los em catalisadores de mudanças amplas e positivas no setor da saúde.”

Próximos passos e desafios

Segundo Giovanni Cerri, presidente dos Conselhos do Instituto de Radiologia (InRad) e de Inovação (InovaHC) do Hospital das Clínicas da FMUSP, o plano é oportuno e, em sua visão, a incorporação da inteligência artificial é uma visão unânime no setor. Mesmo assim, ele destaca a questão da interoperabilidade como um desafio, citando como exemplo o prontuário eletrônico, cuja implementação no Brasil já deveria ter sido feita há anos e continua sendo uma grande dificuldade para o setor público: “Quem vai executar isso? Essa é a grande pergunta, para que não soframos uma nova decepção. O plano é uma necessidade, mas precisamos evitar que fique apenas na discussão teórica”.

Para ele, o setor da saúde já considera a IA essencial para melhorar o acesso, reduzir a desigualdade e cortar custos. No entanto, Cerri alerta que o sucesso dessas tecnologias depende de medidas complementares, como a melhoria da conectividade e a interoperabilidade – que precisa ser resolvida antes de outras mudanças na saúde: “É urgente porque pode fazer uma grande diferença nos custos, economizando dinheiro e ajudando na sustentabilidade econômica da saúde, que é uma das principais preocupações”.

Além disso, para que o plano se realize, é fundamental o engajamento da sociedade civil. Solano de Camargo, professor doutor de Direito Internacional Privado na Faculdade de Direito da USP, acredita que iniciativas como plataformas digitais para a participação pública em discussões sobre IA são essenciais. E campanhas educativas são importantes para aumentar o conhecimento e a inclusão da população em relação à IA, como também parcerias público-privadas com escolas, ONGs e empresas também são chave para desenvolver e colocar em prática projetos de IA.

Apesar dessas necessidades, Camargo entende que o plano é um passo ambicioso e necessário para o Brasil se posicionar no cenário global de IA. Mas a chave para o sucesso reside na implementação eficaz, na capacitação de talentos e na criação de uma infraestrutura robusta: “Apesar de o plano, no geral, ser bem aceito, especialmente pela sua abordagem inclusiva e ambiciosa de posicionar o Brasil como líder global em IA, por outro lado, o plano não especificou – como se esperava – questões críticas, como a origem dos recursos necessários para os investimentos, a progressão cronológica das implementações e o papel da iniciativa privada, sem falar que deixou de fora iniciativas bem sucedidas, como as desempenhadas pelo Poder Judiciário e pelo CNJ”.

Em sua visão, essa falta de detalhamento da implementação do plano, e sem essas diretrizes objetivas, medir o progresso e alocar recursos torna-se uma dificuldade, fazendo com que o plano pareça mais uma iniciativa publicitária do que um projeto concreto para o país. Por isso, entre as ações imediatas, considera fundamental iniciar a construção ou a compra de supercomputadores e datacenters sustentáveis por universidades e centros de pesquisa, para suportar a demanda por processamento de dados de IA.

De olho na regulação da IA

Outro ponto que o professor da Faculdade de Direito da USP destaca é o avanço da regulamentação da IA que tramita no senado. Para ele, enquanto o PBIA visa impulsionar a inovação e o desenvolvimento da IA, o projeto de lei propõe regulamentações que limitam essa flexibilidade, impondo ônus excessivos aos desenvolvedores e prejudicando a inovação. Segundo Carmargo, a falta de alinhamento pode gerar barreiras regulatórias que dificultam a implementação das ações propostas no plano, comprometendo sua eficácia e a competitividade do Brasil no setor de IA. Ele destaca a necessidade de alinhar políticas de inovação com marcos regulatórios para criar um ambiente que promova o desenvolvimento tecnológico e garanta a proteção dos direitos dos cidadãos.

É o que também ressalta Gustavo Macedo, especialista em inteligência artificial, diplomacia científica e inovação, e professor de administração e economia do INSPER e de relações internacionais do IBMEC. Para ele, é necessário acompanhar a aprovação da Lei de Inteligência Artificial: “Entramos também em um território imprevisível, pois, como ainda não sabemos qual será a versão definitiva da lei, não é possível prever como uma eventual aprovação pode afetar o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial.”

Segundo Macedo, o anúncio deixou claro que questões orçamentárias podem sofrer alterações, dependendo da disponibilidade de recursos para sua implementação nos próximos quatro anos. Com o governo federal enfrentando cortes de gastos e o congelamento de algumas verbas, a situação se torna ainda mais incerta: “Fazer promessas é uma coisa; cumprir é outra completamente diferente. Com relação à implementação, ainda há cautela quanto à capacidade do governo brasileiro de executar realmente o Plano”.

Além disso, o especialista destaca que com um prazo de quatro anos, o Plano abrange os próximos dois anos do atual governo, mas levanta dúvidas sobre o cenário para os dois anos seguintes, considerando especialmente a imprevisibilidade das próximas eleições.

Renata Mielli, do MCTI, reitera que o plano brasileiro de IA é um plano de investimentos e não se propõe a ser um plano de regulação da inteligência artificial: “É claro que o plano dialoga com esse projeto enquanto estabelece uma estrutura de governança para sua execução, mas também prevê algumas ações para apoiar mecanismos de regulação posterior que sejam aprovados no Congresso Nacional”, afirma.

O senador Eduardo Gomes (PL-TO), que está liderando a proposta de regulação da inteligência artificial no Senado, participou de um evento na Fiesp na segunda-feira (5) e anunciou que vai sugerir uma audiência pública na próxima semana para debater o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial: “Ouvir a indústria brasileira, as áreas de saúde, finanças, enfim, todas aquelas áreas que já vem colaborando com esse debate durante esse processo que já dura dois anos de discussão de um assunto extremamente delicado e importante para o nosso país”.

Fonte: Futuro da Saúde