Pacientes do SUS ficam sem acesso a remédios eficazes contra Covid

Data: 11/03/2022

Quase dois anos após o início da pandemia, a primeira geração de remédios eficazes contra a Covid-19 está disponível ou prestes a entrar no Brasil, incluindo medicações que agem como verdadeiro tratamento precoce —evitando que casos leves e moderados evoluam para a forma grave. Essas drogas, porém, são encontradas apenas em serviços privados e não têm previsão de chegar ao SUS.

O alto custo cobrado pelas farmacêuticas e a lentidão do Ministério da Saúde em avaliar os tratamentos são apontados como entraves para a oferta na rede pública, segundo médicos e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.

“Estamos superatrasados na incorporação das medicações no SUS. Com um problema de saúde pública tão grande, era para o Ministério da Saúde estar negociando com as farmacêuticas, mas ainda estão pensando em cloroquina”, critica o infectologista José David Urbaez, da Sociedade Brasileira de Infectologia no Distrito Federal.

A lentidão do governo agrava a desigualdade de acesso entre a população brasileira. De um lado, pacientes que podem pagar por remédios como regkirona, baricitinibe e rendesivir (veja lista ao final da reportagem) ganham uma nova chance de vencer a Covid. De outro, usuários do SUS que não têm qualquer opção.

O Ministério da Saúde afirmou à Repórter Brasil que ainda não tem negociação aberta com as farmacêuticas e que isso só pode acontecer após a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) aprovar a inclusão das drogas no SUS. Disse ainda que tem dado celeridade às análises da Conitec e que está em contato com as farmacêuticas para agilizar os pedidos à comissão.

De oito farmacêuticas consultadas, apenas MSD e Pfizer disseram à reportagem que conversam com o governo sobre aquisições, porém, seus produtos esperam aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Em vez de acelerar a avaliação dos tratamentos, o governo se esforça para manter vigente o kit Covid, composto de cloroquina, ivermectina e outros remédios comprovadamente ineficazes. Foi o que ocorreu em janeiro, quando o governo reprovou as novas diretrizes para o SUS, que traziam sugestões baseadas em evidências científicas e vetavam as drogas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

Esse novo protocolo, elaborado por um grupo de médicos e cientistas, foi barrado pelo então secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do ministério, Hélio Angotti Neto, um defensor das ideias bolsonaristas.

O veto de Angotti impediu que pacientes do SUS tivessem acesso ao tocilizumabe, indicado para artrite reumatoide, mas usado há meses em hospitais privados para Covid. Essa droga atua na fase grave da doença e é recomendada desde julho pela OMS (Organização Mundial de Saúde).

As diretrizes nacionais, que consideravam o tocilizumabe para pacientes “em franca deterioração clínica”, foram aprovadas em junho pela Conitec, que assessora o ministério nessas decisões. Angotti e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, passaram seis meses sem tocar no assunto, até o documento ser rejeitado neste ano. Queiroga vai dar a palavra final, mas não se sabe quando.

Essa lentidão prejudica a entrada no SUS de outras drogas até mais efetivas. “Nos últimos seis meses, novos fármacos para a fase hospitalar já se colocaram com melhores níveis de evidência”, afirma Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da Unesp.

Membro do grupo científico, ele diz ser necessário atualizar as recomendações. O que não se sabe, porém, é se há interesse do governo. “Não sabemos se o ministro quer que a gente continue fazendo ciência”, diz.

Uma das opções citadas por ele é o baricitinibe, anti-inflamatório que em janeiro passou a ser fortemente recomendado pela OMS para a Covid grave. O remédio também está em uso na rede privada e fora do SUS. A fabricante Lilly pediu em janeiro que a Conitec avalie sua incorporação. A análise se inicia nesta quinta (10).

TRATAMENTO PRECOCE
Além dos remédios para casos graves, há outros para a fase inicial, quando o vírus está nas vias respiratórias. “Se o vírus for bloqueado nesta etapa, podemos evitar que o caso evolua para a forma grave”, diz Barbosa.

São ao menos seis drogas: os antivirais rendesivir (Gilead), paxlovid (Pfizer) e molnupiravir (MSD), que impedem a replicação do vírus, além dos anticorpos monoclonais sotrovimabe (GSK), regkirona (Celltrion Healthcare) e evusheld (Astrazeneca), que atacam o vírus. Apenas as três últimas estão liberadas no Brasil como tratamento inicial. O rendesivir está autorizado só para a fase grave, enquanto Pfizer e MSD aguardam aprovação da Anvisa.

Nos Estados Unidos e na rede pública do Reino Unido, o tratamento inicial é oferecido apenas para pacientes de alto risco. É o que Barbosa faz em seu consultório particular, mas usando o regkirona, “a única opção” no Brasil, ele diz. “O verdadeiro tratamento precoce”.

“Estou aplicando em uma paciente com Covid que tem artrite reumatoide e risco maior de evoluir para um caso grave. É uma infusão única de quatro ampolas. Não tem efeito colateral e reduz o risco de óbito em até 90%”, conta o médico, que já indicou a terapia para ao menos 40 pacientes. Ao custo de R$ 2.800 por ampola, o tratamento sai por R$ 11.200.

Apesar do preço, o médico diz que a medicação poderia ser adotada no SUS para idosos acima de 70 anos e imunossuprimidos. Como esses grupos têm uma resposta menos eficiente às vacinas, as drogas anti-Covid poderiam reduzir hospitalizações e mortes. “Para esse grupo vale a pena investir”.

Apesar disso, a análise de incorporação do regkirona não foi feita, pois a fabricante não apresentou a documentação necessária, segundo o ministério.

ALTO CUSTO
As drogas anti-Covid são caras e o preço é um elemento central para decidir a inclusão no SUS. O rendesivir, por exemplo, teria um impacto de R$ 28 bilhões nos primeiros cinco anos, segundo avaliou a Conitec em agosto, quando rejeitou a incorporação por considerar os benefícios incertos ante custo elevado.

Mas, se um remédio realmente funcionar, ele deve ser incorporado, opina o pesquisador Jorge Bermudez, da Fiocruz, especialista em acesso a medicamentos. O que não significa pagar bilhões em tratamentos, mas tornar seus preços acessíveis, com a fabricação de genéricos. “Um imunossuprimido que vai a um hospital público deve receber as medicações, não apenas quem é atendido no Einstein”, diz o pesquisador.

O baricitinibe, por exemplo, não tem versão genérica no Brasil. Na Índia, o tratamento de 14 dias com o genérico custa ao todo US$ 5,50 (R$ 28), mas o preço proposto pela Lilly para os EUA está acima de US$ 2.300 (R$ 11.700), de acordo com a organização Médicos Sem Fronteira (MSF). No Brasil, o tratamento sairia por R$ 2.750, segundo valores do mercado privado.

Para viabilizar a produção de genéricos, seria necessário suspender as patentes farmacêuticas, um assunto caro às farmacêuticas e aos países onde as empresas estão sediadas. Desde outubro de 2020, arrasta-se na Organização Mundial do Comércio uma proposta que permitiria essa suspensão na pandemia. Mas a discussão “está travada pelos países ricos”, segundo Bermudez.