Nos próximos anos, crescerá a tensão entre a demanda por serviços de saúde e a sustentabilidade financeira do Sistema Único de Saúde (SUS). O envelhecimento populacional, o aumento do nível de prevalência de doenças crônicas e de seus fatores de risco e o surgimento de novas epidemias são alguns dos desafios a serem enfrentados, já no curto prazo, pelo sistema de saúde. Segundo dados do IBGE, entre 2012 e 2021, o número de brasileiros idosos aumentou em 39%, alcançando 14,7% da população residente no país. A diabetes mellitus e a obesidade têm sido caracterizadas como as doenças crônicas de maior prevalência nas capitais brasileiras, com aumento considerável nas últimas décadas.
A prevalência de fatores de risco associados a essas condições também aumentou, como mostram os recentes recordes em consumo de álcool, de alimentos ultraprocessados e de inatividade física no país, especialmente no período da pandemia de Covid-19.
Há um fator indispensável para que essas e outras demandas possam ser atendidas: o orçamento da Saúde. Este precisa estar adequado às demandas da população, caso contrário o sistema público pode enfrentar graves problemas para coordenar suas políticas públicas. O desabastecimento de medicamentos essenciais no Programa Farmácia Popular e os péssimos resultados do Programa Nacional de Imunizações (PNI) são exemplos recentes disso. E como na saúde prevenir é mais barato e eficiente que remediar, o descuido orçamentário, no curto prazo, eleva ainda mais a demanda por financiamento, no longo prazo.
Esse impasse entre má gestão no orçamento e demandas de saúde é o que tem acontecido no Brasil. Analisando o orçamento federal da Saúde, a Nota Técnica n.29 elaborada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a Umane, identifica quatro razões que corroboram o dilema apresentado: i) o orçamento federal em saúde está estagnado desde 2013; ii) o investimento em saúde é insuficiente para ampliar a cobertura do SUS; iii) o aumento dos recursos destinados via emendas parlamentares, definidas politicamente, em detrimento das despesas discricionárias, que seguem diretrizes estratégicas do Ministério da Saúde; e iv) o crescimento significativo dos benefícios tributários à saúde privada.
Em relação ao primeiro ponto, entre 2013 e 2023, o orçamento federal da Saúde cresceu apenas 2,5%, alcançando R$ 182,6 bilhões. Este valor, além de ser inferior à média dos últimos nove anos, R$ 186,6 bilhões, foi impulsionado por recursos emergenciais destinados ao combate à Covid-19. Desconsiderando esses recursos, o orçamento da saúde cresceu menos de 1% nos últimos dez anos. O crescimento é baixíssimo e aponta para uma estagnação na destinação dos gastos em Saúde.
Analisando o orçamento em despesas correntes e investimento, que representam as despesas para custeio dos serviços do SUS e investimentos em ampliação e melhoria na infraestrutura física do sistema, o panorama também é desafiador. Nos últimos dez anos, os investimentos em Saúde contraíram 64,2%, saindo de R$ 16 bilhões em 2013 para R$ 6 bilhões em 2023. Sua participação relativa alcança apenas 3% do orçamento total da Saúde em 2023. Na prática, o baixo investimento impede reformas e construções de unidades básicas de saúde, hospitais, UPAs, centros de pesquisas e desenvolvimento tecnológico, e nas estruturas de saneamento básico em aldeias indígenas, por exemplo.
EMENDAS PARLAMENTARES: CRITÉRIOS POLÍTICOS PARA ALOCAÇÃO DE RECURSOS CRESCEU NOS ÚLTIMOS ANOS
A crescente participação das emendas parlamentares no orçamento, em detrimento das despesas discricionárias, é o terceiro problema apontado pelo IEPS. As emendas parlamentares são norteadas essencialmente por interesse dos parlamentares, ao passo que as despesas discricionárias são destinadas por critérios técnicos estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Assim, na medida que a proporção das emendas parlamentares no orçamento aumenta e a participação das discricionárias diminui, os critérios políticos para alocação de recursos prevalecem, afastando o planejamento orçamentário das necessidades territoriais. Entre 2014 e 2023, desconsiderando os gastos com Covid-19, as emendas parlamentares ampliaram sua fatia no orçamento da Saúde de 4,2% para 8,2%. As despesas discricionárias representavam 17,4% do total de recursos da saúde em 2014, e apenas 14,8% em 2023.
Por fim, o estudo discute os riscos associados ao crescimento das desonerações fiscais em saúde. Entre 2013 e 2023, houve um aumento de 88% nos subsídios vinculados a todos os itens da saúde, que saíram de R$ 37,6 bilhões para R$ 70,7 bilhões. Desse total, R$ 24,5 bilhões serão destinados a despesas médicas privadas, beneficiando somente aqueles que não dependem exclusivamente do SUS para acessar serviços de saúde. Com o orçamento do SUS estagnado, como é possível justificar tal ampliação no nível das desonerações fiscais em prol do atendimento das demandas da saúde privada?
O fato é que nos próximos anos a demanda por saúde crescerá. E ainda que tenhamos espaço para aprimorar a gestão dos recursos já disponíveis, sem uma priorização orçamentária, o equilíbrio entre oferta e demanda se dará às custas de filas, desabastecimentos e, de forma mais grave, na piora da qualidade de vida dos brasileiros e brasileiras.
Quebrar esse ciclo é urgente e a oportunidade para isso é agora. O novo governo se aproxima nos próximos meses do prazo para formulação do novo Plano Plurianual (PPA), uma oportunidade ímpar para organizar prioridades e definir metas que vão ancorar o orçamento do SUS nos próximos quatro anos. É fundamental que o planejamento esteja, de fato, orientado aos principais desafios do SUS. Na ausência desse direcionamento, os esforços para melhoria da saúde brasileira dificilmente encontrarão a trajetória desejada.