Importância do projeto de resolução da OMS sobre doenças raras para equidade e inclusão na saúde global

As doenças raras afetam mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo, com 70% dessas condições começando na infância. No Brasil são mais de 13 milhões de pessoas com uma dessas doenças. Em boa hora o Conselho Executivo da Organização Mundial da Saúde (OMS), no último dia 4 de fevereiro de 2025, considerando o relatório do diretor-geral, decidiu recomendar à septuagésima Assembleia Mundial da Saúde a aprovação de projeto inicial de normativa internacional, de um draft [1] de iniciativa de mais de dez países, dentre eles, o Brasil, destacando os desafios enfrentados por essas populações e propondo uma série de estratégias para promover a equidade e a inclusão na saúde global.

Conforme descrito no projeto de normativa, as doenças raras são condições de saúde que afetam uma pequena porcentagem da população, geralmente descritas como afetando um em cada 2 mil indivíduos ou menos; existindo aproximadamente 8 mil doenças raras conhecidas, a maior parte das quais consideradas crônicas, progressivas e que podem resultar em deficiências graves, e algumas em morte prematura.

A preocupação global decorre também dos seguintes desafios a serem ultrapassados pelos Estados-membros, a saber: (1) Complexidade e multissistemicidade: as doenças raras frequentemente afetam múltiplos órgãos e sistemas, levando a comorbidades e complicações graves, por exemplo, a Síndrome de Ehlers-Danlos, que é uma doença genética que afeta o tecido conjuntivo, pode causar problemas nas articulações, pele e vasos sanguíneos; (2) Ausência de medicamentos, procedimentos, equipamentos e especialistas a garantir o adequado tratamento para a grande parte dessa população; (3) Desigualdade no acesso a cuidados: o acesso a diagnósticos e tratamentos é muitas vezes desigual, com altos custos e disponibilidade limitada de produtos de saúde; (4) Ausência de diagnóstico em determinadas localidades ou emissão de diagnósticos tardios: a obtenção de um diagnóstico correto pode levar anos, com muitos pacientes nunca recebendo um diagnóstico adequado, devendo-se recordar que a OMS estima que até 8.000 doenças raras tenham sido identificadas, sendo 80% delas de origem genética; e (5) o Impacto psicossocial: pessoas com doenças raras, como os portadores de fibrose cística, que tem afetada a saúde dos seus pulmões e do sistema digestivo, assim como algumas doenças da pele, como a epidermólise bolhosa, acabam por enfrentar discriminação, estigmatização e isolamento social.

Diante de todos os reais desafios a serem superados, segue um pequeno resumo das principais propostas do projeto de normativa para a melhoria do atendimento a essa população no mundo:

  1. Abordagem holística centrada no paciente: O draftda OMS enfatiza a importância de se adotar uma abordagem holística, integral, centrada no paciente para atender às necessidades das pessoas que vivem com uma doença rara. Isso inclui melhorar a vida dos pacientes e trabalhar com a sociedade para remover barreiras no acesso à saúde, educação, emprego e outros domínios da vida, envolvendo em especial apoio psicossocial para pacientes, suas famílias e cuidadores.
  2. Cobertura universal de saúde: destaca-se a necessidade de alcançar a cobertura universal de saúde, garantindo que todas as pessoas, incluindo aquelas com doenças raras, tenham pleno acesso a serviços essenciais de saúde de qualidade, sem enfrentar dificuldades financeiras. Isso inclui a promoção da saúde, prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos, bem como o acesso a medicamentos, vacinas, diagnósticos e tecnologias de saúde essenciais.
  3. Inovação e pesquisa: o projeto busca incentivar a inovação na pesquisa e desenvolvimento de tratamentos para doenças raras, incluindo o uso de tecnologias digitais e telemedicina. A Organização propõe a criação de centros de excelência nacionais, regionais e internacionais como centros especializados de atendimento, pesquisa e treinamento para doenças raras. Além disso, a OMS indicará, com a aprovação da resolução, o estabelecimento de registros nacionais para doenças raras ou a colaboração com registros internacionais existentes para fortalecer a coleta de dados, análise e divulgação de informações sobre pessoas que vivem com uma doença rara.
  4. Acesso equitativo a medicamentos e tratamentos: há de se reconhecer formalmente que os altos preços de muitos produtos de saúde para doenças raras e o acesso desigual a esses produtos representam desafios significativos, e com isso, devem ser elaboradas estratégias para promover o acesso equitativo e oportuno a medicamentos de qualidade, seguros, eficazes e a preços acessíveis para todas as pessoas com doenças raras em todo o mundo.
  5. Triagem e diagnóstico precoce: A OMS enfatiza a importância da triagem e do diagnóstico precoce para prevenir o aparecimento de sintomas da doença ou retardar a progressão de doenças comuns e raras. Isso inclui programas de triagem universal de recém-nascidos e o desenvolvimento de canais coordenados de diagnóstico e pesquisa para pessoas não diagnosticadas com suspeita de doença rara.
  6. Participação social e inclusão: A proposta destaca a importância da participação social para a cobertura universal de saúde, saúde e bem-estar. A organização propõe a implementação de políticas e programas que previnam e combatam o estigma e a exclusão social, promovam a conscientização e aumentem a coleta precisa de dados. Além disso, o documento sugere o envolvimento de organizações de pacientes, grupos de apoio de pares e organizações de pessoas com deficiência no desenvolvimento de políticas para garantir que as vozes das pessoas afetadas por doenças raras sejam ouvidas e incorporadas aos processos de tomada de decisão.

Passo significativo

O fato é que o projeto de normativa em trâmite na OMS cuida-se de proposta crucial para promover a equidade e a inclusão na saúde global, realçando a necessidade de construção e execução de políticas e programas que abordem as barreiras enfrentadas pelas pessoas com doenças raras, promovendo a conscientização, a coleta de dados precisos e a colaboração global, alinhando-se com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, propostos em 2015 como parte da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Importante lembrar que este draft publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) se refere a um documento preliminar que ainda está em fase de revisão e consulta. Com o cumprimento dessas etapas, a OMS poderá incorporar as principais contribuições, garantindo que as recomendações finais sejam bem fundamentadas e amplamente aceitas. Após a consulta, a proposta deverá ser revisada novamente e a versão final há de ser preparada para apresentação à Assembleia Mundial da Saúde, quando então será discutida e votada pelos representantes dos Estados-membros. Para ser aprovada, a resolução precisa obter a maioria dos votos, o que está previsto para ocorrer ainda neste ano de 2025.

Uma vez aprovada, a resolução deve ser implementada pelos Estados-membros com o apoio da OMS. A organização também deverá monitorar a implementação e o impacto da resolução, fornecendo relatórios periódicos sobre o progresso em cada uma das nações. Com a nova normativa, espera-se que ocorram avanços no Legislativo brasileiro para a provação dos projetos de lei que tratam da temática[2] e que a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, instituída em 2014[3], possa ser revista e que traga efetividade às políticas públicas que forem elaboradas e executadas.

Caso aprovada a normativa pela OMS sobre doenças raras, o documento importará em mais um passo significativo para melhorar a vida das pessoas afetadas por essas condições. Ao adotar uma abordagem integral e centrada no paciente, os Estados-membros poderão trabalhar ainda mais para garantir que todas as pessoas com doenças raras tenham efetivo acesso a cuidados de saúde de qualidade como também garante a nossa Constituição por meio de estratégias que estarão amparadas por políticas compromissórias internacionais.

[1] Rare diseases: a global health priority for equity and inclusion. OMS, 4.2.2025. Disponível em https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/EB156/B156_CONF2-en.pdf. Acesso em 20 fev. 2025.

[2] Entre os projetos de lei (PLs) em trâmite no Congresso Nacional sobre doenças raras, os mais significativos são: 1. PL 109/2025, que propõe a criação do Sistema Nacional de Monitoramento de Doenças Raras no Sistema Único de Saúde; 2. PLS 56/2016 (originário do PLC 1606/2011), que dispõe sobre a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras; e o 3. PL 5060/2019, que cria o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde das Pessoas com Doenças Raras.

[3] Portaria nº 199, de 30 de janeiro de 1914, do Ministério da Saúde.

  • Richard Pae Kim é professor do curso de mestrado em Direito Médico da Unisa, conselheiro do CNJ e supervisor do Fonajus (2021-2023) e integrante do GT Cigen.
  • Giovanni Guido Cerri é professor titular do Departamento de Radiologia e Oncologia da FMUSP.
  • Magda Carneiro-Sampaio é professora titular do departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP, coordenadora do Centro Integrado de Doenças Genéticas (Cigen) da FMUSP.

 

Fonte: Consultor Jurídico (Conjur)