O Hospital São Camilo, de São Paulo, recentemente se negou a implantar em uma paciente um dispositivo intrauterino (DIU), usado como método contraceptivo. Essa é uma diretriz do hospital, ligada aos valores religiosos da instituição, que é confessional católica. No entanto, especialistas em Direito Médico e Bioética afirmam que uma pessoa jurídica não tem direito à objeção de consciência e que condutas desse tipo podem violar a autonomia médica.
O São Camilo informou, em nota pública, que não faz procedimentos contraceptivos — em mulheres ou homens. Por isso, orientou a paciente a buscar outro prestador de serviço dentro da rede credenciada do plano de saúde.
O hospital — que também atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS) — informou que só autorizaria a inserção do DIU em casos graves de saúde, como endometriose.
A Constituição traz o direito à objeção de consciência, mas apenas para pessoas naturais (não para as pessoas jurídicas). Isso também está previsto no Código de Ética Médica (CEM). Luciana explica que o código é voltado aos profissionais, ou seja, não regula a atuação das instituições.
Para ela, a “inexistência de norma específica que dê às instituições de saúde o direito à objeção de consciência” torna a normativa do hospital inconstitucional.
Segundo a advogada, também deve ser levado em conta que a situação viola os direitos de saúde da mulher e o direito constitucional ao planejamento familiar.
Marinella Afonso de Almeida, sócia do escritório Marzagão e Balaró Advogados e especialista em Direito Médico, ressalta que “um hospital privado não é um indivíduo, mas, sim, um prestador de serviço de saúde que deve assegurar o direito social a que se propõe” — afinal, “a saúde é direito de natureza social”.
Por isso, se a negativa é “baseada na institucionalização de um direito individual, pautado em crença religiosa”, tal conduta confronta “de forma direta a autonomia profissional do médico que atua em suas dependências”.
Segundo ela, a diretriz institucional que impede os médicos de fazer procedimentos contraceptivos por motivos religiosos pode configurar infração ao artigo 47 do Código de Ética Médica.
Esse dispositivo proíbe o médico de usar sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença religiosa, “que as instalações e os demais recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos”.
Além disso, o artigo 20 do CEM prevê que o médico não pode permitir a interferência de interesses religiosos de seu empregador ou superior “na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade”.
Com relação à paciente, Marinella acredita que a negativa do método contraceptivo pode caracterizar “uma sobreposição do interesse particular da instituição de saúde ao direito à saúde e, ainda, um possível atendimento discriminatório”.
Tertius Rebelo, especialista em Direito Médico e da Saúde e membro consultor da Comissão Especial de Direito da Saúde da OAB Nacional, tem opinião semelhante.
Segundo ele, “a recusa de um procedimento médico baseada em valores religiosos da instituição pode ser interpretada como uma violação dos direitos do paciente, especialmente se essa recusa limitar o acesso a serviços de saúde essenciais”.
Rebelo também se baseia na ideia de que a objeção de consciência “é um direito individual do médico” e “não se estende automaticamente às instituições de saúde”.
Ele diz que hospitais e clínicas têm a responsabilidade de garantir a disponibilidade dos serviços necessários para os pacientes, “independentemente das convicções pessoais dos médicos que nelas trabalham”.
Autonomia dos profissionais
Como explica o advogado, a autonomia médica “está intrinsecamente ligada à capacidade do médico de tomar decisões baseadas em evidências científicas, livre de pressões externas, sejam elas institucionais ou religiosas”.
Assim, a imposição de crenças religiosas viola essa autonomia e limita a liberdade do médico “de exercer seu julgamento profissional e de oferecer os melhores cuidados possíveis aos seus pacientes”.
Condutas do tipo também ameaçam “a equidade e o respeito à diversidade cultural e religiosa dos pacientes”. Rebelo destaca que o respeito à autonomia profissional e à diversidade de crenças “é essencial para manter a integridade e a confiança na Medicina”.
De acordo com Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP, “quando uma instituição de saúde impede que seus médicos possam atuar conforme os melhores preceitos da ciência médica, restringindo o ato médico por motivos confessionais, há claro desrespeito ao Código de Ética Médica”.
Na sua visão, “não se trata da objeção de consciência do profissional, mas, sim, uma restrição institucional que fere a autonomia médica”.
Fürst ressalta que o direito à saúde também inclui o direito ao planejamento familiar, previsto na Constituição. A Lei do Planejamento Familiar prevê que as ações de planejamento devem ser exercidas pelas instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não.
Segundo o advogado, mesmo que seja confessional, o hospital não pode restringir a aplicação de qualquer técnica que viabilize os direitos fundamentais à saúde e ao planejamento familiar.
Autonomia da instituição
Enquanto Luciana Dadalto diz que o hospital também está sujeito às normas do sistema público se promove atendimentos via SUS, a advogada e professora Fernanda Schaefer, pós-doutora em Bioética, considera necessário entender o contexto da relação jurídica para analisar a validade da negativa.
De acordo com ela, se o procedimento for solicitado via SUS, “é preciso analisar se há contratualização do hospital para o procedimento”.
Se sim, “não pode haver recusa”, conforme as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Se não, “a recusa estaria justificada por ausência de contratação do serviço”.
Se o atendimento for particular, é preciso verificar se o contrato do usuário possui cobertura para o procedimento, se há liberação do plano. Também é necessário entender “quem prescreveu o dispositivo e por que ele procurou esse hospital”.
Outra medida importante é averiguar se há outros hospitais ou prestadores na rede. Em caso positivo, basta que o plano encaminhe a eles. Em caso negativo, “o plano deve custear fora da rede, se preenchidos os requisitos da modalidade contratual dela e do rol da ANS”.
Em resumo, Fernanda acredita que, “não sendo situação de urgência e emergência e não sendo procedimento contratualizado pelo SUS, o hospital tem autonomia para determinar quais procedimentos realiza ou não, de acordo com sua missão e seus valores”.
Ela ressalta que os médicos podem recusar tratamentos por objeção de consciência, conforme resolução do Conselho Federal de Medicina. Mas “instituições (sejam públicas ou privadas) não teriam como invocar esse argumento”.
Apesar da polêmica causada nas redes sociais sobre o tema, Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito Médico e Bioética, também entende que o hospital privado pode se negar a fazer um procedimento por preceitos religiosos se não houver risco à integridade da saúde do paciente.
“A negativa não ofende o Direito Médico, nem os princípios da Bioética, como não maleficência, beneficência, justiça e autonomia”, explica a advogada. Ela também não vê a conduta como discriminatória, já que o São Camilo também não promove vasectomia em homens.
Segundo Mérces, o hospital poderia responder criminalmente pela negativa de um procedimento, mas apenas em caso de risco de vida para o paciente, em uma situação de emergência.
Para ela, o encaminhamento a outro hospital credenciado pelo plano de sáude da paciente é correto. Caso a operadora tenha uma rede própria, “custear as despesas de outro hospital e de prestadores de serviço seria uma alternativa necessária, do ponto de vista contratual e das relações de consumo, já que os planos de saúde não podem recusar cobertura para procedimentos previstos no rol da ANS”.
Fonte: Consultor Jurídico