Especialistas demonstram preocupação com maior influência do Congresso sobre os gastos com saúde e apontam problemas na gestão desses recursos
Diante dos desafios fiscais para manutenção e financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o repasse de verbas para o setor via emendas parlamentares têm se tornado cada vez mais expressivo. Entre 2014 e 2023 o volume de recursos destinados por meio de emendas cresceu 371%, passando de R$ 4,9 bilhões em 2014 para R$ 23 bilhões em 2023, conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A partir de 2025 a influência do Congresso Nacional nos recursos da saúde deve aumentar ainda mais. No final de novembro foi sancionada a Lei Complementar nº 210/2024 que determina novas obrigações de repasses para o setor. A mudança levanta preocupações sobre a eficiência e equidade na distribuição do recurso, bem como sobre o impacto do Legislativo no planejamento das políticas do Ministério da Saúde.
As emendas parlamentares são instrumentos utilizados por deputados e senadores para alocar recursos no orçamento para projetos ou demandas específicas, como obras, serviços, compra de equipamentos ou programas sociais. Existem diferentes tipos de emendas: individuais, de bancada e de comissão. Até a sanção da lei complementar, a inclusão de ações na saúde pelos parlamentares era obrigatória somente através de emendas individuais, que precisam ter no mínimo 50% das propostas para ações e serviços públicos de saúde (ASPS). Agora, a nova lei determina que essa obrigação seja cumprida também pelas emendas de comissão a partir de orientações e critérios técnicos indicados pela gestão federal.
As emendas de comissão são recursos indicados pelas comissões permanentes da Câmara dos Deputados e do Senado que discutem assuntos temáticos. Para a analista de políticas públicas e integrante do projeto de monitoramento do orçamento da saúde do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), Marcella Semente, os repasses de emendas individuais já são polêmicos e prejudicam as ações do Executivo, por isso a determinação da obrigatoriedade para as de comissão gera preocupação. “Desde o fim das emendas de relator, conhecidas como orçamento secreto, as emendas de comissão cresceram muito e carecem de transparência. Nelas, nós não sabemos quem é o autor das propostas. As emendas individuais já fragmentam e enfraquecem o financiamento das políticas, esse movimento com as de comissão só amplia o problema”, afirma a especialista.
Semente destaca que enquanto a Lei ainda estava em votação o IEPS enviou ao gabinete de alguns deputados uma proposta de alteração do texto legislativo para suprimir o item referente às emendas de comissão. Segundo o instituto, o documento não esclarece pontos essenciais para a sua execução. “Metade vai ser destinado para a saúde, mas é 50% de cada comissão? Temos comissões que discutem turismo ou comércio, por exemplo, elas também têm que acatar essa determinação? Como deverá ser feito esse debate? São questões que não estão claras na Lei”, diz.
Na visão do professor de Economia Política da Saúde na Universidade de São Paulo (USP), Áquilas Mendes, a decisão da Lei Complementar não foi bem recebida pelo setor. Para ele, diante das problemáticas que já carregam os recursos das emendas individuais, aumentar a obrigatoriedade é um retrocesso: “Essa notícia nos causa bastante espanto e choque. Em primeiro momento pode parecer que a ideia é ajudar o setor, mas isso é uma falácia. Esses recursos atrapalham todo o processo, e o governo está indo contra as recomendações dos especialistas e pesquisadores de limitar o gasto com emendas.”
Aumento de emendas como alternativa para o corte de gastos
Antes do anúncio do governo federal sobre o pacote fiscal, o setor estava na expectativa para saber se os cortes de gastos afetariam a saúde. Nas medidas destacadas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi informada apenas a nova regra para as emendas parlamentares de comissão. Diante disso, especialistas avaliam que a Lei Complementar veio como uma alternativa para evitar mudanças no piso da saúde.
De acordo com o consultor, economista e especialista em finanças públicas e corporativas, Murilo Viana, a gestão federal tem tentado implementar a recuperação da capacidade de receita desde o início do mandato. No entanto, um aumento de receita implica no crescimento de algumas despesas como na saúde. Diante disso, atualmente o Executivo sofre grande pressão para limitar os gastos com saúde e, para o economista, a saída encontrada foi destinar metade dos recursos das emendas de comissão para o setor.
“O governo está pressionado pelo arcabouço fiscal e pelas contas públicas. Se as emendas parlamentares são obrigadas a colocar alguns bilhões na saúde, desobriga o governo de ter que fazer um esforço para complementar o valor do piso, só que isso impacta diretamente a qualidade do gasto”, diz Viana.
A Lei Complementar foi sancionada após um longo debate no Legislativo. O projeto surgiu como uma resposta à suspensão de execução de emendas imposta pelo Supremo Tribunal Federal, em agosto deste ano. Na ocasião, o ministro Flávio Dino determinou que o Congresso e o governo dessem mais transparência e rastreabilidade para o envio das verbas aos municípios. A suspensão foi revogada nesta segunda-feira, 2.
Além disso, inicialmente o Senado havia retirado as mudanças nas emendas de comissão, mas os deputados votaram pela inclusão do item na Lei. Viana explica que, ao contrário das emendas individuais, as emendas de comissão não são impositivas, ou seja, o governo não tem a obrigação de executá-las. Por isso, o especialista acredita que tenha sido feito um acordo entre os dois poderes diante das discussões sobre a permanência da regra. “É uma vitória do governo com cara de derrota, seria bastante difícil não mexer em nada relacionado à saúde no momento fiscal atual”, observa o economista.
Geraldo Biasoto, professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e ex-secretário de Investimentos do Ministério da Saúde, também enxerga a mudança legislativa como uma prevenção ao corte de gastos. Para ele, o cumprimento do piso e o crescimento da destinação de recursos para saúde é positivo para a imagem do governo, mas em detrimento da eficiência.
O professor comenta que as emendas de comissão teriam capacidade para submeter propostas mais abrangentes e aprofundadas na saúde em comparação com as individuais. No entanto, acredita que, pela falta de comunicação entre os Poderes em relação ao planejamento, isso não irá acontecer. “O processo poderia ser mais organizado e acho interessante esse esforço de ideias para resolver a suspensão do STF, precisamos disso, mas que retorne com soluções melhores. Estamos vendo o governo utilizar as suas armas diante de um Congresso forte demais. Mas temos uma subnegociação no meio disso, pois se as emendas de comissão crescem, está crescendo o poder que manda dentro das casas”, observa.
Impacto no orçamento e no planejamento do SUS
Conforme a Emenda Constitucional nº 86/2015, o piso constitucional da saúde determina que o orçamento do setor receba no mínimo 15% da receita corrente líquida. De acordo com Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista e professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da USP, apesar do piso já existir há quase dez anos, o governo ainda não conseguiu se ajustar à regra. Por isso, o aumento de repasses via emendas parlamentares aumentou nos últimos anos. Para o professor, essa foi a maneira encontrada pela União para garantir o percentual exigido.
No entanto, os valores gastos pelo Congresso atingiram altos números: dados do orçamento de 2024 mostram que o total destinado para emendas parlamentares foi de mais de R$ 44 bilhões. Mesmo diante da obrigatoriedade de 50% apenas para as emendas individuais, 66% do valor foi direcionado para a saúde. “Isso acabou se transformando em um negócio muito complicado e a situação vai exigir muita criatividade do Ministério da Saúde. É uma quantidade relativamente grande do orçamento que o Ministério tem que dar um jeito de acolher”, comenta Vecina.
Além de restringirem o orçamento, o aumento dos recursos gastos com emendas parlamentares também impacta o planejamento das ações da pasta. A destinação dos congressistas não passa por instâncias do SUS que definem a alocação de recursos para políticas e serviços — as decisões do Executivo são negociadas, articuladas e tomadas em conjunto pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) constituída por representantes do Ministério, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Desse modo, a pesquisadora do Ipea e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, Fabiola Sulpino Vieira, explica que o repasse de verba dos parlamentares não é planejado e, por isso, colabora para a insuficiência de financiamento do sistema. “O orçamento já é escasso e restrito e cada vez parcelas maiores estão sendo destinadas sem planejamento. Isso é uma inversão de lógica em um modelo subfinanciado”, afirma Vieira.
O professor Mendes ainda observa que as propostas das emendas também não passam pelo Conselho Nacional de Saúde e atrapalham a execução dos planos de saúde elaborados em nível municipal, estadual e federal. Além disso, o aumento do repasse pode afetar serviços ao gerar uma dependência da gestão local com os parlamentares que não podem garantir uma destinação constante. “As emendas vêm e atravessam o planejamento, porque elas estão ligadas a interesses estritamente políticos. Isso é altamente problemático, dificulta ações a longo prazo e ameaça a sustentabilidade dos serviços que precisam de um fluxo estável”, enfatiza.
Em termos de organização, o SUS também é pensado em macrorregiões e regiões de saúde para que os serviços sejam ofertados de acordo com a demanda da população. A pesquisadora Vieira destaca que as propostas de emendas parlamentares também não levam essa divisão em consideração, o que faz com que municípios pequenos recebam valores muito altos, apesar de não possuírem demanda suficiente e, por vezes, faltarem recursos humanos para realmente utilizar o recurso.
Essa também foi a conclusão de uma pesquisa conduzida pelo IEPS que analisou dados de emendas parlamentares em saúde entre 2016 e 2024. Segundo o estudo, desde 2016 a tendência é que quanto menor o porte populacional do município, maior o volume de recursos via emendas para a atenção básica. “A probabilidade de você ter uma ineficiência é grande nesse processo. As emendas parlamentares individuais não podem ser usadas para financiar pessoal e muitas vezes é disso que o município precisa. Então, esse modelo pode não estar trazendo benefícios”, explica Vieira.
Desigualdades na distribuição e falta de transparência
As emendas parlamentares também podem contribuir para as desigualdades no acesso à saúde. Um estudo conduzido pela Rede Temática de Saúde do Grupo de Institutos, e Fundações e Empresas (GIFE) constatou diversos problemas de equidade na distribuição. A pesquisa observou que os municípios mais beneficiados são os que já possuem capacidade consolidada de oferta de serviços de atenção básica. Além disso, em 2023, cidades com disponibilidade de verbas muito baixas receberam, em média, 66% menos recursos do que locais com disponibilidade muito alta.
O estudo também concluiu que as emendas propostas para atenção básica não estão sendo direcionadas para as localidades com resultados de saúde mais desafiadores e que o padrão de distribuição é especialmente não equitativo nas regiões Nordeste e Norte. “Os municípios com cobertura de saúde mais baixa receberam quatro vezes menos emendas do que os de coberturas mais altas. Já é possível perceber que as emendas não geram uma distribuição equitativa”, afirma Pedro Garin, pesquisador à frente do estudo e coordenador do programa de Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setubal.
Diante disso, a pesquisa do GIFE também resultou na criação da plataforma “INEAB: Índice de Necessidade Potencial de Emendas para a Atenção Básica”, que reúne indicadores relacionados à demanda em potencial por emendas em determinados municípios. Garin ressalta que as emendas podem ter um lado positivo, na medida em que um deputado ou senador pode estar mais próximo da população e ter mais acesso aos problemas pontuais do seu Estado, por isso a ferramenta vem como uma forma de auxiliar os parlamentares durante a elaboração e consideração das propostas. “Justamente agora com o aumento dos repasses para saúde é o momento do Congresso desenvolver melhores mecanismos de coordenação que levem em conta indicadores técnicos para melhorar a aplicação desses recursos”, avalia o pesquisador.
Outro problema levantado pelos especialistas é a falta de transparência nesse processo. A especialista do IEPS comenta que a quantidade de parlamentares é grande e com isso ocorre a pulverização dos recursos, o que dificulta seu rastreamento. “Quando tínhamos emendas que não chegavam a 1% do orçamento, não era tão premente a necessidade da transparência nos níveis que estamos discutindo agora. Antes era um recurso realmente muito pontual, que ia pra um município ou outro, mas com o volume atual precisamos de mecanismos mais eficazes de monitoramento”, explica Semente.
A pesquisadora Vieira também salienta que os recursos das emendas são registrados no orçamento em uma área que não diz qual é a finalidade do gasto. Isso dificulta a fiscalização, o controle e estudos sobre os impactos dessas destinações. “Dificulta a sociedade ter um olhar mais amplo para essa questão e que possamos exigir uma aplicação melhor desse dinheiro”, complementa.
Fortalecimento do Congresso e perda de poder do Executivo
Os recursos provenientes de emendas parlamentares são alocados principalmente nas chamadas despesas discricionárias, gastos que o governo pode escolher como ajustar ou executar de acordo com suas políticas e prioridades. Elas são diferentes, portanto, das despesas obrigatórias, que são fixadas por lei e precisam ser pagas, como salários de servidores, benefícios previdenciários e programas assistenciais. A pesquisa do Ipea revelou que, no período analisado, o aumento das emendas parlamentares levou a uma redução do poder do Ministério de decidir a destinação dos recursos discricionários. A participação das emendas nessa despesa cresceu de 18,6% em 2014 para 52,5% em 2023. Ou seja, no ano passado o governo decidiu o uso de menos da metade desses gastos.
Para os especialistas a nova decisão referente às emendas de comissão corrobora para uma menor força do Executivo nas decisões orçamentárias e pode diminuir ainda mais a influência do Ministério nas despesas discricionárias. “O Poder Executivo está muito encurralado e cedendo cada vez mais a alocação de recursos para os parlamentares por pressão do próprio Congresso. Então, há um desequilíbrio de poder e os impactos disso podem ser grandes”, alerta a pesquisadora do Ipea.
Semente, do IEPS, avalia que a Lei Complementar reduz a capacidade do governo de implementar políticas públicas, o que pode levar a um enfraquecimento do SUS. “Quando um governo entra, ele tem algumas prioridades que ele discute com o Congresso, mas agora com o aumento das emendas os parlamentares passam a ter mais voz nas decisões. Isso gera uma desvinculação dos recursos com as ações e as políticas de governo”, diz a especialista.
Já Gonzalo Vecina discorda parcialmente. Para ele, assim como o Ministério vai ter que se ajustar para incluir o gasto com emendas no seu orçamento, os congressistas também vão ter que se adequar à mudança para fazer as propostas de comissão para a saúde. “Não acho que o Congresso ganha muita coisa. O melhor para eles era como estava antes, sem obrigações. Agora eles ganharam uma coleira com a saúde e vão ter que se adaptar”, comenta.
Fonte: Futuro da Saúde