Este artigo baseia-se em parte do parecer elaborado pela Comissão Especial de IA e Inovação do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) sobre o Projeto de Lei 2.338/2023, com a complementação de voto do último dia 4 julho.
A análise, baseada na experiência como juíza do trabalho, formadora de juízes e vice-coordenadora do Laboratório de Inovação do Tribunal do Trabalho do Rio de Janeiro, visa a prevenir futuras antinomias jurídicas decorrentes de ambiguidades e contradições terminológicas. A seguir, apresenta-se uma análise detalhada dos principais pontos do projeto de lei, suas inadequações terminológicas e propostas de correção.
Contextualização sistematizada do PL e metodologia utilizada
O projeto de lei examinado visa a regulamentar o uso de sistemas de inteligência artificial (IA) em diversos contextos, com ênfase na proteção ao trabalho e aos trabalhadores. Entre os dispositivos mais relevantes, destacam-se:
Art. 14: Define sistemas de IA de alto risco, incluindo aqueles utilizados em recrutamento, triagem, avaliação de candidatos, decisões sobre promoções e controle de desempenho.
Art. 56: Estabelece diretrizes para mitigar impactos negativos e potencializar impactos positivos da IA sobre os trabalhadores, evitando demissões em massa sem negociação coletiva.
Aplicou-se o método semântico na análise do projeto de lei, concentrando-se no significado das palavras e expressões utilizadas no texto normativo, identificando ambiguidades, vaguezas e contradições que possam gerar interpretações divergentes e conflitantes.
Analisou-se o contexto em que termos atrelados à proteção ao trabalho e ao trabalhador foram utilizados, tanto dentro do próprio projeto de lei quanto em relação ao ordenamento jurídico vigente (isso incluiu a verificação de significados atribuídos a esses termos em outras leis, doutrina e jurisprudência).
Principais termos analisados e inadequações identificadas
Trabalho: o termo “trabalho” aparece constantemente no texto normativo, sem distinção clara entre “trabalho subordinado” e “trabalho autônomo”. Essa ambiguidade pode causar interpretações conflitantes. Quando o projeto menciona “crescimento inclusivo, desenvolvimento sustentável e bem-estar, incluindo a proteção do trabalho e do trabalhador”, não fica claro se a proteção do trabalho refere-se a empregados ou a trabalhadores lato sensu. Para evitar futuras confusões interpretativas, é essencial especificar o tipo de trabalho conforme o contexto.
Trabalhadores: o termo “trabalhadores” é utilizado de forma genérica, abrangendo uma ampla gama de situações. Sem especificações, o termo pode ser interpretado de várias maneiras, incluindo trabalhadores subordinados, autônomos, entre outros. Para assegurar clareza, seria benéfico definir os trabalhadores como “trabalhadores subordinados”, “empregados” ou “trabalhadores autônomos”, conforme aplicável ao contexto a ser normatizado.
Contrato de trabalho: o projeto utiliza o termo “contrato de trabalho” em contextos que podem incluir várias formas de relações laborais. Entretanto, se a intenção é referir-se especificamente à relação de emprego regida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o termo mais adequado seria “contrato de emprego”. Essa substituição ajudaria a evitar ambiguidades.
Emprego e trabalho: “emprego” e “trabalho” são termos frequentemente confundidos no texto. O projeto menciona “gestão de trabalhadores e acesso ao emprego por conta própria”, uma expressão contraditória, já que “emprego” implica trabalho subordinado, enquanto “conta própria” sugere autonomia. Para maior precisão, “emprego” deveria ser utilizado exclusivamente para trabalho subordinado e “trabalho” para outras formas de relação laboral.
Conta própria: a expressão “conta própria” é utilizada de forma equivocada. O termo “emprego por conta própria” é uma contradição, já que o emprego pressupõe subordinação. Seria correto referir-se a “emprego por conta própria” (sic) como “trabalho autônomo” ou “trabalho independente”.
Dispensa: o termo “dispensa” também é problemático. Usado genericamente, pode referir-se tanto a “dispensa por justa causa” quanto a “dispensa sem justa causa”, o que pode gerar confusão. Especificar o tipo de dispensa em cada contexto evitaria essas ambiguidades.
Demissão em massa: finalmente, o termo “demissão em massa” não possui correlação no ordenamento jurídico trabalhista brasileiro. A “demissão” tecnicamente refere-se à ação do empregado de romper o contrato, enquanto “dispensa” é a ação do empregador.
Além disso, a dogmática jurídica distingue dispensa coletiva e dispensa plúrima. A dispensa coletiva, também conhecida como dispensa em massa, caracteriza-se pela dispensa simultânea de um grupo de empregados por um motivo único, geralmente relacionado à redução do quadro de pessoal da empresa. Por outro lado, a dispensa plúrima ocorre quando há a dispensa de um número significativo de empregados, porém por motivos diversos e individuais, não necessariamente relacionados a uma reestruturação empresarial.
É importante ressaltar que a dispensa plúrima não se configura como dispensa coletiva quando ocorre dentro dos padrões normais de rotatividade da empresa. A análise da normalidade leva em consideração o histórico de dispensas da empresa, o setor de atuação e as condições do mercado de trabalho.
Assim, para alinhar-se à terminologia adequada, seria melhor substituir “demissão em massa” por “dispensa coletiva” e definir claramente esses termos no projeto.
Conclusões
A análise revelou várias inadequações terminológicas no projeto de lei, especialmente no uso dos termos “trabalho”, “trabalhadores”, “contrato de trabalho”, “emprego”, “conta própria”, “dispensa” e “demissão em massa”. As propostas de correção apresentadas no parecer elaborado pela Comissão Especial de IA e Inovação do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) visam a garantir clareza e precisão jurídicas, prevenindo futuras antinomias. Isso contribui para a segurança jurídica, previsibilidade das decisões judiciais e a efetividade do direito.
Patrícia Medeiros é juíza titular de Vara do Trabalho da Capital do Rio de Janeiro, presidente da Ajutra (Associação dos Juízes do Trabalho), membro da Comissão Especial de Inteligência Artificial e Inovação do IAB (Instituto de Advogados do Brasil), vice-coordenadora do Subcomitê do CNJ no TRT-1 de Inovação no Poder Judiciário, vice-coordenadora do Laboratório de Inovação do TR-T1, especialista em Inovação/IA no Poder Judiciário, formadora de juízes pelo TST/Enamat/CSJT e pela Escola de Magistratura Nacional Francesa (École Nationale de la Magistrature — ENM), doutoranda em Ciências Jurídicas Filosóficas (Teoria da Decisão) pela Universidade de Coimbra, Portugal, mestre em Ciências Jurídicas Processuais pela Universidade Clássica de Lisboa, professora e conteudista da Escola de Magistratura TRT-1, membro do Conselho Pedagógico da Escola Judicial do TRT-1, consultora da ABA Nacional (Associação dos Advogados do Brasil) — CNDPT e coordenadora pedagógica da PM Cursos Especializados.
Fonte: CONJUR (Portal Consultor Jurídico)