Para advogado, o papel do médico fica mais importante na hora de defender cada tratamento; segundo juiz federal, agora não bastará prescrição, mas prova robusta
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu na quarta-feira, 8, que o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativo, o que desobriga as operadoras de saúde a fornecer tratamentos que estejam fora da lista de mais de 3.300 itens. No entanto, há exceções que ainda geram confusão entre os familiares de pacientes.
Segundo o STJ, pode haver cobertura pelos planos de saúde de itens fora do rol, desde que a incorporação da tecnologia demandada não tenha sido indeferida após análise técnica da ANS; haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como a Conitec e o Natjus); e, quando possível, o magistrado consulte pessoas com expertise técnica na área da saúde, antes de decidir.
“Não ficou claro quem atestaria a eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências, mas entendo que isso ficaria a cargo do médico que assiste o paciente”, diz o advogado Rafael Robba, especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva Advogados. Na interpretação de Robba, bastaria que o médico fizesse um relatório técnico, declarasse que existe eficácia comprovada e anexasse estudos para comprovar isso.
“O papel do médico ficou ainda mais importante, mas o paciente ainda tem o Judiciário para protegê-lo em caso de negativa abusiva do plano de saúde. O médico deve auxiliar o paciente que pretende demandar um tratamento por via judicial e fornecer subsídios para demonstrar a existência de evidências científicas para embasar a demanda”, afirma Robba.
O advogado aconselha que os consumidores não se desesperem com a decisão do STJ porque as liminares concedidas anteriormente pela Justiça continuam vigentes. Ou seja: quem já recebe um tratamento conquistado por via judicial não perderá acesso a ele porque causa da decisão do STJ.
No entanto, é preciso lembrar que toda liminar pode ser revogada a qualquer momento, a critério do juiz que a concedeu ou se a operadora recorrer e o tribunal revogar a decisão.
“A decisão do STJ vai funcionar como uma jurisprudência, como algo que vai influenciar as decisões dos juízes, mas ela não tem o poder de revogar decisões já tomadas pelos magistrados. Os juízes continuam a ter autonomia para analisar os casos e até interpretar se a decisão do STJ se aplica ao caso específico.”
O novo entendimento pode facilitar a defesa dos planos de saúde nos casos em que o beneficiário solicite um tratamento fora do rol, sem ter uma justificativa clara sobre a eficácia do tratamento. Nessa situação, é possível que a empresa consiga derrubar uma liminar ou obter uma decisão favorável a ela.
“Além disso, a mensagem que o STJ transmitiu pode estimular as operadoras a negar mais tratamentos solicitados pelos beneficiários, antes mesmo da ação judicial”, acredita Robba. Há casos em que as operadoras analisam os pedidos dos clientes e fornecem os tratamentos por via administrativa, para evitar a judicialização. “A partir de agora, pode ser que as operadoras utilizem o rol como uma lista burocrática para negar ainda mais os tratamentos que não fazem parte dela”, diz ele.
Ao mencionar a necessidade de que o tratamento em questão tenha sido recomendado por órgãos como a Conitec e o NatJus, o STJ valorizou o esforço de avaliação criteriosa das novas tecnologias de saúde antes da incorporação nas listas da saúde suplementar e do Sistema Único de Saúde (SUS).
O NatJus foi criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para auxiliar os juízes de todo o país a tomar decisões embasadas pelas evidências científicas quando precisam decidir sobre o fornecimento de medicamentos. Por meio de um convênio com o CNJ, instituições acadêmicas (como o Hospital Israelita Albert Einstein) fazem avaliações técnicas sobre a eficácia dos medicamentos.
Basta o juiz procurar o sistema e-NatJus no site do CNJ, digitar o nome do produto solicitado pelo paciente e consultar as avaliações antes de decidir. A base de dados é pública. Qualquer pessoa pode pesquisar os relatórios disponíveis sobre o tratamento que esteja recebendo por via judicial ou pretenda receber.
O juiz federal Clenio Jair Schulze, professor da Escola de Magistratura Federal de Santa Catarina e pesquisador da judicialização da saúde, analisou o resultado de mais de 17 mil notas técnicas emitidas por essa ferramenta até o final de março. Segundo ele, quase metade (45,9%) das análises técnicas não eram favoráveis aos autores das demandas, por razões como falta de evidência científica de eficácia do produto na doença em questão.
“Medicina baseada em evidências não significa uma opinião médica”, afirma Schulze. “Antes da decisão de quarta-feira, bastava uma mera prescrição médica. Agora, o STJ sinaliza a necessidade de uma prova robusta, como a demonstração da eficácia, da eficiência e da segurança do tratamento”, diz.
Não se sabe quantos juízes no Brasil usam o e-NatJus e estão familiarizados com os conceitos de medicina baseada em evidências. “Muitos juízes não sabem o que é isso, mas uma boa parcela já conhece esses conceitos porque o Supremo Tribunal Federal (STF) mencionou a importância dessas ferramentas durante anos ao discutir as decisões de saúde pública.”
Como professor, Schulze participou de dezenas de cursos em tribunais brasileiros para orientar os juízes. “É fundamental que os magistrados usem essas ferramentas e considerem esses conceitos antes de decidir”, diz.
“Muitas vezes os juízes concedem tratamentos que não têm evidência científica e o resultado não é o esperado para o cidadão que utilizou. Há um dispêndio do recurso pela operadora (ou pelo SUS), sem que o resultado do tratamento seja razoável. Em última análise, é um dispêndio inútil. A conta será paga por todos os outros clientes do plano.”
Fonte: Estadão