Como o conhecimento e educação qualificam a sociedade para a discussão de políticas públicas de saúde

Associações de pacientes e influenciadores podem impulsionar mudanças por meio de informação responsável e advocacy

 

A participação ativa das pessoas no próprio cuidado tem ganhado tração nas últimas décadas. Segundo a própria Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu ainda na década de 1990, para melhores desfechos e reduzir as disparidades o paciente deve exercer maior controle sobre decisões e ações que afetam sua saúde. Hoje, décadas depois, a centralização do cuidado na figura do paciente passou a reestruturar a lógica do ecossistema de saúde em si, e as transformações sociais, culturais e tecnológicas trazem não apenas novas oportunidades para a participação social, mas também novos desafios para a qualificação desse debate.

Nesse sentido, é possível observar uma movimentação cada vez maior para trazer à mesa não apenas os tomadores de decisão, mas também membros da sociedade civil, pacientes, associações de pacientes, profissionais de saúde, representantes das inúmeras indústrias que constroem o setor.

A compreensão de que cada agente pode trazer uma perspectiva nova e única para o mesmo problema tem inspirado ações como o EDUCA, plataforma desenvolvida pela Novartis que tem como objetivo criar um espaço de aprendizado e troca entre associações de pacientes e influenciadores voltados para a área de saúde. A iniciativa promoveu um encontro em novembro, na capital paulista, e reuniu convidados de diversos segmentos e campos de conhecimento. Foi o primeiro no novo formato do projeto, que já dura três anos.

“Quando pensamos em saúde, pensamos em como integrar todas as pessoas que fazem parte desse ecossistema. É uma oportunidade de conexão”, afirmou Sammy Schlesinger, diretor de Comunicação e Patient Advocacy da Novartis no Brasil. “O protagonismo do paciente é uma preocupação mundial, e a proposta é reunir diferentes indivíduos, de diferentes backgrounds, para construir esse diálogo. Temos refletido sobre como apoiar a jornada desse paciente e identificamos que a educação e a comunicação são estratégias importantes. Queremos fomentar essas discussões.”

Para Catherine Moura, médica sanitarista e CEO da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), eventos dessa natureza contribuem para a construção de um ecossistema de colaboração e fortalecimento da comunidade de pacientes: “É uma oportunidade de aprimorar os nossos conhecimentos, estreitar relacionamentos e aprender conteúdos novos.”

Fortalecimento da comunidade de pacientes

No Brasil, o último levantamento feito sobre grupos sem fins lucrativos apontou a existência de pelo mais de 4,7 mil associações de saúde, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A força das conexões sociais em saúde é reconhecida pela OMS, que traz o termo no Glossário de Termos de Promoção da Saúde 2021, destacando que a troca entre diferentes indivíduos pode fornecer o acesso a informações e recursos em saúde, influenciar as normas sociais e comportamentos e mobilizar apoio social para saúde.

Embora tenham se fortalecido nos últimos anos, as comunidades de pacientes ainda enfrentam desafios. Obtenção de recursos, alcance e visibilidade das pautas e qualificação técnica do debate são alguns deles. Ao fortalecer estes pontos, seria possível obter mais reconhecimento como parceira ativa nos processos decisórios, saindo de um lugar de ser apenas uma voz e assumindo mais protagonismo para integrar as discussões.

Neste contexto, o conhecimento de como funcionam as políticas públicas em saúde e a comunicação efetiva podem representar uma virada de chave. Foi com esta visão que a plataforma EDUCA surgiu. A sigla é um acrônimo que une as primeiras letras de cinco frases e palavras: Educando sobre doenças e políticas públicas; Desenvolvendo habilidades de comunicação, redes sociais e advocacy; Unindo a sociedade, influenciadores e ONGs em Comunicação e Advocacy.

“A pergunta que fizemos foi: como podemos fortalecer a discussão de novas tecnologias de saúde e de políticas governamentais?”, explica Schlesinger. “Primeiro, pensamos em educação. Depois, no desenvolvimento de técnicas de comunicação com influenciadores e associações de pacientes, para que essas vozes possam ser ampliadas e levem uma mensagem robusta a quem precisa. A plataforma une pacientes com foco em educação, desenvolvimento e advocacy.”

Um exemplo de espaço de atuação desses grupos é justamente na incorporação de novas tecnologias de saúde, seja no Sistema Único de Saúde (SUS) ou na saúde suplementar, direito garantida por lei. Para Tiago Farina, advogado especializado em direito sanitário e conselheiro em advocacy, é importante desmistificar a ideia de que os tomadores de decisão detêm todo o conhecimento em todas as matérias analisadas.

“Médicos, enfermeiros, pacientes, operadoras de saúde vão olhar para o problema cada um a partir de uma perspectiva. E é só enxergando o problema inteiro que você vai ser capaz de tomar uma decisão mais acertada. É isso que nós, que queremos ter algum tipo de influência nesse processo, devemos lembrar. Temos que levar a voz de quem sabe mais, e essa é também a voz do paciente”, defende Farina.

Era digital e o paciente-influenciador

A tecnologia tem sido um dos fatores de transformação, alterando o espaço e a maneira como pessoas e associações se mobilizam. A internet permitiu a criação das comunidades online que desafiam as fronteiras e se organizam de maneira autônoma. E, neste contexto, a expansão e a democratização de redes sociais possibilitaram não apenas a construção de comunidades de pacientes, mas também o surgimento da figura do paciente-influenciador.

Para Vicente Carvalho, idealizador do portal Razões para Acreditar – iniciativa que nasceu como vitrine para notícias positivas em reação ao ambiente de pessimismo online –, ouvir o relato em primeira pessoa proporciona uma oportunidade valiosa de conexão potencializada pelas redes sociais. “O feed não é um mural, as pessoas entram nas redes sociais para ver e conversar com pessoas. As pessoas se conectam de forma emocional, não racional. Quando eu dou um nome, uma idade, um rosto, isso muda. Pessoas se importam com pessoas”, analisou.

Apesar destes canais terem aberto as portas para que o paciente fale por si só no que diz respeito à vivência com a doença, o cenário demanda responsabilidade. É preciso garantir que a informação compartilhada seja qualificada, um desafio significativo em um ambiente tão propício para a desinformação.

Por isso, como influenciador de saúde, é importante não apenas compartilhar sua experiência com a doença em questão, mas estar atento nos debates que estão acontecendo sobre o tema e acompanhar outras autoridades, como sociedades médicas e órgãos de saúde. É o que Jéssica Tauane, influenciadora digital e que tem hidradenite supurativa, uma doença dermatológica crônica autoinflamatória, pontua:

“Eu dialogo muito com o público que me segue. São outros pacientes, equipe médica, membros da indústria. Você tem que ter um panorama de que não é só a sua perspectiva sobre a doença, mas que você precisa navegar por todo esse ecossistema em volta da condição. A nossa experiência como paciente é importante e rica, mas tem suas limitações também, e por isso a importância de dialogar com outros atores e complementar o nosso conteúdo.”

Tauane ressalta ainda a importância de usar desses canais digitais para estimular a participação social de outros pacientes nas esferas públicas de decisão, como audiências e consultas, e fortalecer a ideia de se enxergar como agente de mudança. “Tudo é uma questão de conscientização. O paciente é uma pessoa que pode exercer sua cidadania não só na hora de votar, mas em outros processos decisórios do país, inclusive na saúde. E isso tem que ser comunicado de forma didática e simples. Esse é o objetivo: engajar pessoas para que elas sejam agentes de mudança”, finaliza.

Dados como pilar estratégico

Outro ponto que tem contribuído para a qualificação do debate é compartilhamento e construção de bancos de dados entre pacientes. As informações obtidas são cada vez mais utilizadas para embasar as estratégias de cuidado e definir o melhor plano junto ao profissional de saúde de referência.

Paul Wicks, PhD em Psicologia e vice-presidente de Neurociência na Sano Genetics, plataforma que conecta e engaja pacientes em estudos clínicos, relembra o impacto que o desenvolvimento de uma comunidade teve para um grupo de soldados veteranos norte-americanos: “As pessoas que estiveram no exército dos EUA, que se envolveram na nossa comunidade de epilepsia e que sofrem convulsões, melhoraram significativamente a autoeficácia e a autogestão do tratamento porque foram capazes de se conectar com outros pacientes como eles por meio de uma plataforma digital.”

O psicólogo destaca também a importância da comunidade na educação sobre a própria doença de maneira objetiva e também o papel do suporte emocional e psicológico que os pacientes encontram em redes de apoio como estas. Essas características são ainda mais potentes para aqueles que possuem uma doença rara, uma vez que mesmo os centros especializados costumam concentrar poucos pacientes, o que pode tornar a experiência solitária e impactar até mesmo a construção de políticas públicas pela ausência de dados.

No Brasil, a coordenadora do Comitê de Doenças Raras da Sociedade Brasileira de Nefrologia (Comdora-SBN) Maria Helena Vaisbich participou da empreitada de criar um registro de doenças raras com envolvimento renal para a construção de dados epidemiológicos, ainda escassos no país. Ela compartilha que um dos empecilhos para isso ainda é a adesão dos médicos, por isso a participação próxima de associações de pacientes pode ser uma alternativa para preencher essa lacuna.

“É uma coisa em que as associações de pacientes podem ajudar, e não apenas com dados próprios, mas também estimulando a participação dos membros em pesquisas clínicas e cobrando o médico a colocar no registro as informações da condição em questão”, afirma Vaisbich. “Nós temos o nosso registro de doenças raras, mas ainda estamos tentando sair da lógica dos estudos randomizados para os de vida real.”

Mas é um cenário que está mudando, na visão de Fernando Cembranelli, especialista em administração em saúde e CEO e fundador da HIHUB.TECH, um hub digital de inovação em saúde. Para ele, a presença do paciente ao longo do processo de desenvolvimento de novas tecnologias está ganhando mais força e a participação cada vez mais cedo abre oportunidades de desenvolvimento do próprio ecossistema de pesquisa e inovação:

“Nesse mercado de saúde digital, começamos a ver muitos pacientes desenvolvendo as suas próprias soluções, temos muita gente se empoderando a partir desse movimento, e isso é algo absolutamente fundamental. Isso começou no Vale do Silício, mas já observamos essa tendência no Brasil e em outros mercados, como o Canadá”, afirma o fundador da HIHUB.TECH.

Apropriação do debate sobre financiamento

Durante o encontro promovido pelo EDUCA, até mesmo novos modelos de remuneração foram abordados. O tema foi discutido pela ótica da saúde baseada em valor (Value-based Health Care, na sigla em inglês), que prioriza desfechos clínicos e incentiva a decisão compartilhada.

Marcia Makdisse, sócia-fundadora da Academia VHBC e responsável por criar o primeiro Escritório de Gestão de Valor na América Latina, explicou que a estratégia surge para transformar não só a forma como o cuidado é prestado, mas também remunerado. “O que é valor? Quando a gente fala em saúde, uma frase de Warren Buffet traduz esse conceito: preço é o que você paga, valor é o que você leva. E o valor é definido pelas pessoas. É o paciente que vai sinalizar o que é importante para ele”, indicou a especialista.

O conceito tem se mostrado uma das saídas para a equação que envolve a sustentabilidade econômico-financeira do setor e um orçamento restrito diante do aumento da demanda. Será mais um tema que a sociedade deverá aprofundar o conhecimento para se apropriar das decisões sobre o financiamento da saúde do país. É o que defendeu Jefferson Bittencourt, head de Macroeconomia da ASA: “Se temos um orçamento restrito, ele vai ter que ser eficiente. A sociedade influencia a discussão e deve se apropriar das políticas que são feitas nesse sentido.”

Neste cenário, a tecnologia poderá uma vez mais ser uma catalisadora. Isso porque a análise de grandes quantidades de dados, com o apoio de inteligência artificial, tem o potencial de aprimorar a gestão de recursos e redução de desperdícios, como apontou Renato Couto, cofundador da plataforma Valor Saúde Brasil. Para o médico, a participação dos pacientes também é fundamental neste processo de desenvolvimento dessas tecnologias: “O paciente é quem tem a experiência real. E a IA chega para nos ajudar a medir os resultados que interessam, o que o paciente mais precisa, sem desperdício.”

 

Fonte: Futuro da Saúde