Depois de um trabalho de convencimento que durou meses, o Ministério da Saúde passou a integrar o órgão consultivo da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A decisão, publicada em decreto presidencial semana passada, está longe de ser uma mera formalidade. É a partir desse colegiado que a pasta, sobretudo a Secretaria de Saúde Digital, passará a trazer para discussão mecanismos que garantam e ampliem a segurança para dados da saúde.
Considerada como uma ferramenta promissora já há alguns anos, a saúde digital abriu espaço, derrubou resistências e se consolidou durante a pandemia de Covid-19. Essa revolução, no entanto, ocorreu sem que houvesse uma regulamentação específica. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, criada em 2018, menciona a saúde. Deixa claro que dados são sensíveis e proíbe, por exemplo, que as informações sejam usadas para seleção de risco e exclusão de beneficiários, no caso de saúde suplementar. As ameaças de uso indevido, no entanto, estão muito além do que consta na lei, que traz princípios gerais, mas que ainda precisam ser regulamentados.
“A saúde tem pontos específicos, que devem ser olhados de forma cuidadosa”, disse ao JOTA a secretária de Saúde Digital, Ana Estela Haddad. Uma das principais responsáveis pela articulação para que o Ministério da Saúde integrasse o conselho, Haddad diz ser essencial promover essa discussão.
A visão é distinta do que defende, por exemplo, o diretor da Agência Nacional de Proteção de Dados, entidade responsável pela regulação, Arthur Pereira Sabbat. Em entrevista ao JOTA concedida em meados deste ano, ele disse que a autorregulamentação já representava um papel importante e que os princípios gerais da lei eram suficientes para trazer proteção. Não haveria, portanto, pressa para mudanças na regulação.
A inclusão do Ministério da Saúde no conselho traz a chance de se discutir a importância da regulamentação e, mais ainda, de se mostrar a urgência das mudanças. E não é difícil entender a razão: quanto maior a demora, maior o risco para a exposição de dados sensíveis ligados à saúde.
Pesquisadora do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo, a advogada Analluza Bolivar Dallari observa que informações de saúde podem ser obtidas muito além de um prontuário médico. A partir de hábitos de consumo, dedados de localização, é possível extrair dados que podem ser usados para a perfilização.
Diante desse quadro, por onde começar? A secretária de Saúde Digital afirma que o primeiro passo é avaliar a dinâmica do conselho para iniciar a construção de sugestões conjuntas. Ela, no entanto, indica pontos considerados importantes: política de dados, o uso da inteligência artificial e de dados abertos para pesquisas.
Dallari, por sua vez, avalia que um importante ponto de partida seria a definição do conceito de dados sensíveis de saúde, dados genéticos e relacionados à saúde. A lei, observa, não traz essa definição. “E é muito importante fazer uma interpretação comparativa com as leis orgânicas da saúde”, diz. A advogada lembra que o Brasil adotou um conceito ampliado sobre saúde, com determinantes e condicionantes. Ela defende que essas diretrizes, apontadas no artigo 3 da Lei 8080/90, podem ser de grande valia para nortear o conceito ao dado sensível da saúde. “Mais ainda, para auxiliar no trato da proteção ampliada de dados que, a princípio, não são considerados sensíveis, mas a depender das inferências podem revelar dados em saúde”, afirma.
Além da definição dos conceitos, a presença do Ministério da Saúde no conselho pode auxiliar na interpretação e regulamentação de pontos pendentes da LGP ligados à saúde, de forma a garantir que fique explícita a proteção de dados não apenas na saúde suplementar, mas no Sistema Único de Saúde.
As discussões ocorrem em um momento em que há um apelo para a expansão de Dados de Saúde, com a interoperabilidade dos dados. “Esse fluxo de informações, feito de forma adequada, segura e ética é muito importante para a gestão da saúde. Ela traz benecios para pacientes, combate desperdícios”, avalia a advogada.
A regulamentação da saúde digital hoje é rarefeita, diz Dallari. “Temos resoluções em conselhos de classe, algumas resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.” Para ela, no entanto, é promissor o fato de haver agora uma disposição de se discutir e enfrentar as fragilidades que, incluem, também a noção que a população dispõe sobre a importância de se preservar seus dados de saúde.
Outro ponto a ser avaliado, na opinião de Dallari, é a responsabilização por abusos. “O tema é tão novo que não há uma definição se a responsabilidade civil é objetiva ou subjetiva. Qual o peso que é dado para a culpa?”
O movimento, avalia a advogada, será muito rápido. Basta ver como ele irá se desenrolar. E como a presença do Ministério da Saúde no conselho irá se refletir, de fato, nos avanços para criação de regras que garantam efetivamente a segurança dos dados em saúde.
Fonte: Jota Info