Após decisão do STF sobre judicialização, instituições se mobilizam em busca de diálogo mais profundo

Fortalecimento da Conitec é visto com preocupação após decisão do STF sobre judicialização da saúde. Entidades se movimentam sobre o tema.

 

A decisão do STF sobre a judicialização de medicamentos não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que estabeleceu critérios mais rígidos para processos judiciais, segue movimentando parte dos principais atores impactados pela discussão, em busca de reverter o impacto aos pacientes ou participar das mudanças que podem ocorrer nos processos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS).

É o caso da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), que enviou um ofício ao Ministério da Saúde no último dia 22 de outubro, solicitando que seja constituído um processo de aprimoramento do processo de ATS realizado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), assim como adotar medidas de participação social para qualquer mudança prevista.

Já associações de apoio ao pacientes buscam o Legislativo para estabelecer novos requisitos para o fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS ou não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Projetos de lei do senador Romário (PL-RJ) e da deputada federal Rosangela Moro (União-SP) tramitam no Congresso Nacional, e as entidades buscam sensibilizar os parlamentares para pautarem os textos.

“Vai acontecer como foi no rol taxativo. A questão vai ser decidida pelo Legislativo, o que é muito ruim. Não queríamos ter esse jogo de poder entre Judiciário, Executivo e Legislativo. No entanto, entendemos que a decisão e a interpretação dela tem questões que estão omissas e que precisam ainda de reflexões para a sua interpretação”, afirma Luana Ferreira Lima, gerente de políticas públicas e advocacy da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale).

Em meio a movimentos, a discussão sobre a possibilidade do país ter uma agência única de ATS segue sendo vista como uma possibilidade em tornar o processo de avaliação mais independente e confiável. A iniciativa depende da avaliação do Ministério da Saúde, já que a pasta, junto ao Governo Federal, seria responsável por propor a mudança. Procurado, o Ministério da Saúde não se posicionou sobre o tema até o momento.

“No caso do Brasil especificamente, a principal vantagem seria economizar e ter um determinado tipo de possibilidade de unificar critérios, dar um pouco mais de consistência ao processo, que é o que faz basicamente a Inglaterra, Austrália e o Canadá. O fato de você ter uma agência única de avaliação de tecnologia, porém, não significa que você tenha uma determinação do que vai ser incluído no rol, seja dos planos de saúde, seja do SUS”, avalia André Medici, consultor em economia da saúde que atuou por 24 anos no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e no Banco Mundial.

Decisão do STF

O STF publicou, em 3 de outubro, a Súmula Vinculante nº 61, que trata do julgamento de medicamentos registrados na Anvisa e não incorporados ao SUS. Ela estabelece que os juízes devem adotar os critérios fixados no julgamento do Tema 6 de repercussão geral, isto, que via de regra os tratamentos não serão fornecidos por decisão judicial.

A ideia é frear o impacto da judicialização da saúde no país. O Governo federal gastou cerca de R$ 1,8 bilhão em 2022 e R$ 2,2 bilhões em 2023 com o tema. Com o aumento do preço de terapias avançadas, o Judiciário buscou o Governo Federal para buscar uma solução para a discussão.

Contudo, estabeleceu critérios para exceções, como o registro na Anvisa, a negativa de fornecimento do medicamento no SUS e, caso tenha passado pela Conitec, que houve ilegalidade no processo de incorporação. Se o medicamento não foi submetido à avaliação, é preciso indicar o fato ou apontar demora no processo. A avaliação de agentes do setor da saúde é que a decisão alça à Conitec poder indiscutível, e existem críticas aos processos desenvolvidos pela Comissão.

“Essa decisão não é de todo mal, tem aspectos positivos. Tem uma definição importante de competências, de quais entes são responsáveis pelo custeio, por exemplo. Para o Estado isso traz segurança jurídica. Mas existem questões que são extremamente difíceis, como as incorporações pela Conitec”, afirma Luana Lima, da Abrale.

Críticas como a falta de transparência no processo, a influência do Ministério da Saúde nas avaliações e a composição da Comissão são algumas das mais frequentes. Por isso, entidades de apoio a pacientes têm buscado no Legislativo uma alternativa para conseguir uma alternativa. “Estamos buscando o Congresso Nacional”, , afirma Antoine Daher, presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) e da Casa Hunter. “Temos dois projetos de lei em andamento e mais um terceiro em produção para ter uma estratégia de enfrentamento. Em nenhum momento defendemos a judicialização, especialmente a banalização dela, mas defendemos o direito do paciente à saúde. No caso das doenças raras, a Justiça é o último recurso que existe para salvar a vida do paciente.”

Daher aponta que atualmente, existem mais de 120 medicamentos para doenças raras registrados na Anvisa, frente a cerca de 200 tratamentos disponíveis no mundo. Deles, menos de 40 estão incorporados ao SUS. “Isso prova que se a gente vai depender do Ministério da Saúde, mais de 70% dos pacientes ficam desassistidos”, afirma o presidente da Febrararas.

Perspectiva do paciente e Legislativo

Os primeiros casos em que juízes se embasaram na decisão do STF para negar um pedido de acesso a medicamentos já estão sendo observados e acompanhados pelas associações de pacientes. Elas temem pelo impacto que a decisão pode provocar, limitando o acesso da população e trazendo riscos à saúde.

No caso da Abrale, por exemplo, o ibrutinibe, medicamento com indicação para o tratamento de pacientes com leucemia linfocítica crônica recidivada ou refratária, é considerado uma das principais terapias que são solicitadas por via judicial, exatamente por ter tido recomendação de não incorporação pela Conitec por conta do impacto orçamentário ao Ministério, isto é, acima do limiar de custo-efetividade definido de R$ 40.000 QALY.

“Deveria ter tido uma atualização desse limiar, ter uma atualização anual. E isso está na normativa sobre custo-efetividade, mas não consideraram essa questão da atualização do índice. A análise do impacto econômico sempre vai nivelar e nada vai ser aprovado, porque o parâmetro que está usando de para o custo daquele medicamento é totalmente fora do padrão. Tudo sofre reajuste”, observa Luana Lima, da Abrale, que aponta que esse como um dos casos que serão impactados pela decisão do STF.

Agora, as associações de pacientes estão centralizando as iniciativas junto ao Congresso Nacional, apontando que não há espaço na Conitec e no Ministério da Saúde para a discussão sobre o impacto das decisões e a atualização sobre o processo de ATS.

Dois projetos de lei já foram apresentados e tramitam no Legislativo. O mais avançado deles é o PLP 149 de 2024, de autoria do senador Romário (PL-RJ). Ele dispõe sobre os requisitos para que entes federados forneçam medicamentos não incorporados pelo SUS, tornando os critérios mais brandos e não considerando a avaliação da Conitec. O projeto aguarda apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para posteriormente passar por outras duas comissões, antes de ser pautado em plenário. Procurada, a assessoria de imprensa do senador Romário não respondeu ao pedido de entrevista ou posicionamento sobre o tema.

A Abrale, junto ao Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), também está trabalhando por outro caminho, buscando o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para sensibilizar instituições do sistema de justiça, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) sobre o impacto da decisão do STF. A entidade levanta dados para, até o final de novembro, apresentar de forma estruturada as informações sobre tratamentos não incorporados e pacientes.

Indústria pede cautela e diálogo

Para a Interfarma, a discussão sobre a possibilidade do Brasil adotar uma agência única de avaliação de tecnologias em saúde tem ocorrido de forma superficial e rápida. Por isso, a entidade aponta que é preciso cautela, diálogo com todos os setores envolvidos nesse processo e análise sobre quais temas o país quer resolver ao propor a mudança.

O mais importante é ter um modelo de incorporação ou ter um acesso qualificado à população? O modelo de incorporação é uma ferramenta, uma ação dentro do nosso grande objetivo, que é mudar a qualidade do atendimento. É preciso escutar todas essas pessoas e não ser induzido por uma única premissa”, afirma Renato Porto, presidente-executivo da associação.

A Interfarma tem buscado desenvolver estudos para colaborar com a discussão sobre incorporação de tecnologias, que devem ser concluídos e apresentados no início de 2025. Enquanto isso, tem procurado o Ministério da Saúde solicitando que seja instituído oficialmente um processo de aprimoramento da ATS no âmbito da Conitec. “Apresentamos um ofício pedindo para que esse processo seja transparente, aberto a tomada pública de subsídios, consulta pública e que se apresente uma norma ou que se elabore uma proposta de norma que leve em consideração todos os atores qualificados desse processo, para que isso depois seja levado para a sociedade com toda segurança”, defende Porto.

Frente a esse cenário, a Interfarma prefere não se posicionar, em um primeiro momento, sobre a possibilidade de existir uma agência única de avaliação de tecnologias. A entidade aguarda uma discussão mais robusta, diálogo e a construção de materiais que embasam esse posicionamento.

“Precisamos ser determinantes na solução que vamos dar, para que tenhamos no final uma legitimação pela própria sociedade e pelos próprios atores. Sob pena, mais uma vez, de caminhar em um processo ancorado ou de uma maneira muito superficial, não chegando a uma solução definitiva nesse processo”, observa o presidente-executivo.

Agência única é a solução?

“O ministro Gilmar Mendes tem razão e concordamos com ele sobre ter uma agência independente. Só que deveriam montar e aprovar essa agência antes de colocar essa decisão do STF sobre a judicialização em vigor. Quem tem que criar é o Executivo e mandar para o Congresso o projeto, mas o STF, com a força que tem, pode alinhar isso com o Governo”, defende Antoine Daher, da Febrararas.

Para o economista André Medici, ter uma agência única pode simplificar o processo de ATS, já que ANS e SUS teria uma única instância decisória, sem necessidade de repetir processos, além de dar validade nacional e dar credibilidade. “Desde que isso não seja uma questão que tenha a mandatoriedade para incorporação, porque as situações têm que ser discutidas caso a caso. Coincide com o que acontece em países mais avançados”, defende. Ele aponta o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), do Reino Unido, como um dos exemplos de modelos semelhantes.

O economista aponta a iniciativa como possível solução para o impacto na questão da judicialização da saúde no país, já que o órgão seria responsável por apontar a eficácia e segurança do medicamento. Assim, seria possível se embasar nessa avaliação para que saúde pública e suplementar fizessem ou não a incorporação. O mesmo vale para processos judiciais.

Além disso, na visão dele, é preciso pensar de forma diferente do que foi feito até hoje: “Quando pensamos nessa questão das novas tecnologias, temos que avançar para processos que não são somente os processos anteriores, onde testam a tecnologia a partir de ensaios clínicos. Isso normalmente é o que se fazia há algum tempo atrás. Atualmente está se discutindo a incorporação de tecnologia através de estatísticas do mundo real. E quando a gente incorpora estatísticas do mundo real, significa que você tem que ter ferramentas que não liberam totalmente o processo, mas libera em caráter experimental, até ver especificamente como é que aquele medicamento está impactando fora do laboratório.”

 

Fonte: Futuro da Saúde