Pejotização: decisão de Gilmar Mendes realça disputa entre STF e Justiça do Trabalho

Entidades já se manifestam a favor da competência da Justiça trabalhista para julgar casos de fraudes, mas STF quer buscar pacificação; especialistas debatem e opinam sobre decisão

 

A decisão tomada pelo ministro Gilmar Mendes nesta segunda-feira (14), suspendendo todos os processos que tratam do reconhecimento do vínculo empregatício decorrente da contratação de pessoa jurídica, a chamada pejotização, dá início a mais um round na queda de braço entre a Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal (STF), que já dura mais de dois anos.

De um lado a Justiça trabalhista defende a ideia da vulnerabilidade do trabalhador diante de contratações suspeitas. Do outro, a Corte argumenta que a reforma trabalhista estabelecida há mais de sete anos prevê a possibilidade de novos arranjos. Muitos advogados ouvidos pelo InfoMoney reconhecem que o conflito entre STF e Justiça do Trabalho vem gerando insegurança jurídica.

E nessa arena os lutadores começam a se organizar. A Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB SP) manifestou o descontentamento com a medida nesta terça-feira (15), divulgando uma nota no final do dia contestando a decisão do ministro do STF. Segundo a entidade, a suspensão, tomada no âmbito do Tema 1.389 da repercussão geral, preocupa por paralisar ações relevantes para a garantia de direitos fundamentais.

A OAB reafirma ainda a competência constitucional da Justiça do Trabalho para julgar ações que envolvem vínculos empregatícios na contratação de pessoas jurídicas. “A licitude desses contratos deve considerar os fatos concretos de cada caso e seguir os princípios constitucionais e processuais que regem o Direito do Trabalho no Brasil”, disse em nota.

Já a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradora do Trabalho (ANPT), que representa integrantes do Ministério Público do Trabalho, também criticou duramente a decisão de Gilmar Mendes. Em nota, a entidade afirma que a decisão do ministro “desfigurou a própria razão de ser da Justiça do Trabalho e nega a competência de artigos da CLT”.

Em sua argumentação, o ministro afirmou que a medida responde à sobrecarga de ações sobre o tema que chegam ao STF, o que ocorre por descumprimento sistemático das orientações dirigidas à Justiça do Trabalho. Para ele, na prática, a Corte tem atuado como instância revisora das decisões trabalhistas.

Para se ter a dimensão do problema, de janeiro a agosto de 2023, o STF atendeu 63% dos 324 pedidos de empresas para anular decisões da Justiça do Trabalho que reconheceram vínculo de emprego, segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

A questão da pejotização envolve um número expressivo de casos em que se discute a possível existência de fraudes na utilização da pessoa jurídica para prestar serviços, que seriam próprios de um trabalhador empregado.

Segundo o presidente da Comissão de Advocacia Trabalhista da OAB-SP, Otavio Pinto e Silva, não existem números exatos de quantos processos com esse teor chegam aos tribunais. “Mas no centro do embate está o aumento do número de reclamações levadas ao STF. Estima-se que cinco mil delas já tenham sido levadas ao Tribunal, com alegações de que a Justiça do Trabalho teria desrespeitado decisões do tribunal”, afirma o representante da OAB.

Para Silva, não é correto dizer que a Justiça do Trabalho esteja desrespeitando o STF, porque em vários casos, como um analisado pelo próprio Gilmar Mendes, a Justiça foi contrária ao pedido do trabalhador e aplicou a jurisprudência do STF.

Saiba o que será decidido pelo STF

– A competência nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços – se da justiça cível ou trabalhista;
– De quem é o ônus da prova quanto a eventual existência de fraude no contrato;
– A licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade.

O que dizem os especialistas

Segundo o advogado Henrique Melo, sócio de trabalhista do NHM Advogados, o STF já havia editado o Tema 725, por meio do qual validava a terceirização de forma mais ampla, nos mesmos termos da reforma trabalhista de 2017. Mesmo assim as decisões da Justiça do Trabalho, em muitos casos, caminhavam no sentido do reconhecimento de vínculo de emprego, o que levava as empresas a recorrer ao STF antes mesmo de esgotadas todas as vias recursar na esfera trabalhista.

“Esse caminho tem sido muito utilizado pelas empresas justamente para recorrer ao Supremo contra decisões desfavoráveis que vão contrariam o Tema 725”, disse Melo.

De acordo com Melo, em dezembro de 2024 a Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho já havia acolhido dois novos Incidentes de Recursos de Revista Repetitivos (IRRs), visando reestabelecer diretrizes sobre temas que envolvem terceirização e pejotização, numa tentativa de criar uma jurisprudência para esse tipo de processo e encerrar as controvérsias. “Todavia, com essa decisão de agora, o STF acaba por se sobrepor ao proposto pelo TST.”

Para o advogado Felipe Mazza, coordenador da área de Direito Trabalhista do EFCAN Advogados, a questão é extremamente delicada e cara ao Direito do Trabalho como um todo, porque há pelo menos 20 anos isso vem sendo muito discutido em ações nos tribunais. Historicamente, a pejotização sempre foi tratada como fraude aos contratos de trabalho. Para Mazza, a Justiça do Trabalho sempre enxergou na prática uma forma de o empregador se esquivar da responsabilidade e do empregado perder uma série de direitos.

“Agora, dependendo da decisão final do STF, é bem possível que haja uma drástica mudança nas relações de trabalho, podendo significar o fim do Direito do Trabalho como conhecemos hoje”, diz o coordenador do EFCAN, acrescentando que a mudança pode tornar mais interessante a contratação de funcionários  “travestidos de pessoas jurídicas”, podendo negligenciar direitos trabalhistas que decorrem do esforço e luta de mais de 200 anos. E o que é pior, decretar a incompetência da Justiça do Trabalho para julgar ações que tratam desses contratos, precarizando ainda mais a relação trabalhista.

“Mesmo que se fale sobre a maior possibilidade de negociação, o que vai acontecer é que o empregado/PJ acabará cedendo à imposição do empregador, que passa ditar regras desfavoráveis, deixando o trabalhador desprotegido.”

Realidade trabalhista

Para o advogado trabalhista Peterson Vilela Muta, do L.O. Baptista Advogados, a discussão tem crescido tanto porque, em grande parte, existe o benefício da isenção do pagamento das custas processuais e honorários advocatícios nos processos trabalhistas, como forma de dar livre acesso à Justiça.

No entanto, as decisões trabalhistas de hoje já não têm mais tanta tendência a ser pró-empregado, levando muito em questão as provas. Por isso, dependendo do caso, as decisões têm aceitado os argumentos dos empregadores, segundo a advogada trabalhista Evely Cavalcanti, do Serur Advogados.

“A reforma trabalhista aprovada em 2017 passou a permitir a terceirização, inclusive, da atividade-fim das empresas. E desde 2018 o STF defende ser possível a terceirização de todas as atividades, desde que ocorra sem subordinação e exclusividade. E a Justiça do Trabalho tem seguido isso”, lembrou.

Mas o que se espera agora é que haja uma pacificação nessa matéria relevante, que vêm sendo discutidas há tempos pelas altas cortes brasileiras, com interpretações opostas, de acordo com o advogado Armando Santos Júnior, sócio da área Trabalhista do Andrade GC Advogados.

“De um lado, temos o Tribunal Superior do Trabalho (TST), que não enxerga outra forma de contratação além daquela tutelada pela CLT. No lado oposto, está a mais alta Corte do judiciário, que vem reformando diversas decisões e ratificando outras formas de contratação que não a celetista numa clara disputa entre justiças, onde o TST foca no que seria mais benéfico ao empregado/prestador de serviço e o STF na evolução das relações de trabalho e da sociedade, admitindo outras modalidades de contratação”.

Segurança jurídica

Essa mudança é justamente o que pode dar mais segurança jurídica para as empresas, segundo a advogada especialista em direito empresarial do Briganti Advogados, Juliana Raffo. “O impacto vai ser enorme, especialmente depois da entrada em vigor da Lei da Liberdade Econômica, de 2020, quando o modelo de contratos PJs ganhou força e que, nem sempre, é fruto de tentativa de burlar a lei trabalhista, mas sim um formato usado como melhor aos interesses das partes”

No dia a dia da advocacia empresarial, os profissionais se veem obrigados a avaliar riscos trabalhistas que o cliente pode ter, exatamente pela insegurança jurídica que decorre da falta de padronização do entendimento sobre o tema no Judiciário. “Especialmente quando lidamos com empresas estrangeiras que encontram dificuldade em entender mais essa ‘jabuticaba’ do nosso país, que, espera-se, será resolvida agora pelo STF”, diz Raffo.

Dessa forma, espera-se que a medida reforce a previsibilidade das decisões do Poder Judiciário como um todo, segundo Lara Sponchiado, advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho no BBMOV – Sociedade de Advogados.

“Esse debate é relevante porque pode mudar o entendimento atual sobre os limites da atuação da Justiça do Trabalho”, afirma o advogado Bruno Okajima, sócio do escritório Autuori Burmann Sociedade de Advogados.

Em nota, a OAB-SP diz apenas esperar que “o tema seja debatido com serenidade e que seja observada a técnica processual, cabendo ao STF a guarda da Constituição, mas respeitadas as manifestações de todas as instâncias da Justiça do Trabalho no exercício da competência que lhes é assegurada pela nossa lei maior.”

 

Fonte: InfoMoney