Nova Fronteira: Brasil é exemplo de sucesso em cirurgia inovadora para hidrocefalia
Heitor, de apenas 8 meses, dormia sereno na maca de uma sala de cirurgia na Santa Casa de São Paulo, enquanto médicos realizavam uma cirurgia cerebral que iria salvar sua vida. Heitor tem hidrocefalia, condição potencialmente fatal que causa acúmulo de líquido cefalorraquidiano (líquor) no cérebro e leva ao aumento da pressão intracraniana e crescimento progressivo da cabeça. Se não forem tratadas, estas crianças enfrentam deficiências graves e mais de metade morre antes do segundo aniversário.
Após uma pequena incisão no couro cabeludo, a equipe inseriu um neuroendoscópio flexível no cérebro de Heitor. O instrumento foi guiado até o terceiro ventrículo cerebral, uma cavidade em forma de fenda, localizada no centro do diencéfalo, entre o tálamo direito e o esquerdo, onde foi feita então uma abertura.
O mecanismo preciso criou uma via alternativa para drenar o excesso de líquor e restaurou o equilíbrio hidrodinâmico natural do cérebro de Heitor. Em seguida, o endoscópio foi direcionado ao plexo coroide, estrutura responsável pela secreção do líquor, para cauterização de pelo menos 90% dessa região, nos lados direito e esquerdo. O processo então, reduz a produção exagerada de líquido.
Estes dois procedimentos, realizados juntos, integram uma abordagem inovadora chamada “terceira ventriculostomia endoscópica com cauterização do plexo coróide (ETV/CPC)” ou simplesmente, “Método Warf”, em homenagem ao seu criador. Criada há cerca de uma década, pelo neurocirurgião americano Benjamin Warf, de Harvard, a técnica é considerada uma alternativa segura e eficaz ao tratamento padrão para crianças de até dois anos de idade.
Desde a década de 1960, o principal tratamento para hidrocefalia em crianças é a colocação de uma válvula que drena o líquido que está se acumulando no cérebro para a cavidade abdominal, cujo nome oficial é derivação ventrículo-peritoneal. O grande problema é que esses dispositivos são propensos a infecções e quase sempre falham ou demandam revisões, exigindo cirurgias adicionais ao longo da vida.
— Metade dessas válvulas complicam por alguma razão. Isso faz com que a criança tenha que passar por uma nova cirurgia — explica a neurocirurgiã pediátrica Giselle Coelho, da Santa Casa de São Paulo e mentora do Projeto Neurokids.
— As complicações mais frequentes surgem no primeiro ano de vida pós-instalação. Elas podem ser infecciosas ou mecânicas e, para nós, o impacto infeccioso é um grande problema porque as crianças chegam com condições graves, como meningite ou ventriculite, que podem gerar lesões cerebrais que alteram seu prognóstico cognitivo e motor — completa a neurocirurgiã pediátrica Simone Rogerio, responsável técnica pelos serviços de neurocirurgia da Fundação Santa Casa do Estado do Pará e do Hospital Oncológico Infantil Octávio Lobo.
Além de menos complicações, outras vantagens do novo método incluem menos infraestrutura médica, menos manutenção pós-cirúrgica, menor período de internação e tempo cirúrgico e, consequentemente, menos custo para o sistema de saúde.
A cirurgia de Heitor, por exemplo, teve cerca de 1 hora de duração. Em seguida, ele foi encaminhado à UTI, onde passou a noite. No dia seguinte, foi para o quarto e em apenas mais um dia, foi liberado para voltar para casa. Agora ele só precisará voltar ao hospital para as consultas de rotina.
O Projeto Neurokids, ONG dedicada a melhorar o prognóstico de crianças com hidrocefalia e espinha bífida no mundo todo, foi o responsável por treinar a Coelho e trazer a técnica ao Brasil, que foi o primeiro país da América Latina beneficiado. Desde o início do projeto, em 2022, mais de 70 crianças brasileiras já foram operadas com essa técnica e a expectativa é que esse número aumente ainda mais.
Até o momento, o procedimento no Brasil é realizado apenas por Coelho e Rogerio, nas Santas Casas de São Paulo e do Pará, respectivamente. Mas outros neurocirurgiões já estão em treinamento e a expectativa é que, em 2025, mais 10 centros com treinamento e capacidade para realizar a cirurgia sejam abertos, em especial nas regiões Norte e Nordeste, em um projeto financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH).
— A ideia é criarmos centros para que essa técnica possa ser replicada. Focamos na região Amazônica, que é muito carente e onde o tratamento sem a válvula faz muita diferença — pontua Coelho.
Rogerio explica que algumas crianças levam até três dias de barco para chegarem ao hospital. A desnutrição infantil, também comum na região, aumenta o risco de complicações com a válvula, o que por sua vez aumenta a probabilidade de elas precisarem de novas intervenções para tratar complicações. Como o “Método Warf” é definitivo, isso representa um grande avanço.
— Estamos muito animados porque isso proporciona melhor qualidade de vida a longo prazo para essas crianças, além de ter um impacto socioeconômico importante, inclusive para o SUS — afirma Rogerio.
Warf criou a técnica após uma visita à Uganda, em 2000, para ajudar a abrir um hospital. Na época, o médico ficou impressionado com o quão comum era a hidrocefalia infantil no país.
Ele começou tratando seus pacientes da maneira padrão, mas notou que muitos implantes falhavam ou infeccionavam, o que poderia ser desastroso se o paciente vivia muito longe do hospital ou se a família não tivesse dinheiro para chegar lá.
Então Warf combinou e adaptou duas técnicas usadas anteriormente, embora não juntas. E funcionou.
De forma geral, a taxa de sucesso do procedimento criado por Warf é de cerca de 76%. No Brasil, a taxa é de 82% – considerando as Santas Casas de São Paulo e do Pará – que já é o maior de todo o projeto. Se considerado apenas a Santa Casa de São Paulo, o índice sobe para 93%.
— É incrível o Brasil estar liderando a maior taxa de sucesso do projeto — comemora Coelho, que se tornou a primeira treinadora do programa, além de seu criador.
Os motivos para o tratamento não ser bem-sucedido incluem infecção – como pneumonia, que gera uma reação inflamatória no cérebro e pode levar ao fechamento da passagem – ou características anatômicas ou fisiológicas da criança, que impedem sua realização.
— Todo procedimento é realizado com base em critérios. Atualmente, nossa primeira opção é querer deixar a criança sem válvula, mas isso nem sempre é possível e a colocação da válvula sempre terá sua indicação — diz Rogerio.
Causas da hidrocefalia
Embora a hidrocefalia seja um problema neurológico multifatorial, no caso de Heitor, ela é consequência da mielomeningocele, uma malformação congênita da coluna vertebral e da medula espinhal, que ocorre quando o tubo neural não se fecha corretamente durante a gravidez. Inclusive, ambas condições costumam caminhar juntas. Sete em cada 10 crianças que nascem com a condição também desenvolverão hidrocefalia.
— A medula e o cérebro são conectados nesse sistema hidrodinâmico, por isso, mal formações da medula, como mielomeningocele, podem estar associadas às disfunções do líquido cerebral. No mundo hoje, a gente tem uma casuística de 500 mil casos por ano de crianças afetadas com hidrocefalia e com espinha bífida, que é uma malformação congênita da medula — explica Coelho.
Devido à condição, Heitor já passou por outras intervenções em seus poucos meses de vida. A primeira delas ocorreu quando ainda estava no útero de sua mãe, Vivian, às 24 semanas de gestação, justamente para o tratamento da mielomeningocele.
— De todas as sequelas da mielomeningocele, ele tem poucas e a hidrocefalia é que nos causa mais medo. Mas foi feito o procedimento e estou muito feliz porque agora ele vai poder continuar se desenvolvendo. Ele já é muito esperto, observador e comunicativo — conta Vivian.
Os especialistas alertam para a importância do diagnóstico precoce da hidrocefalia. Além de permitir uma intervenção precoce e mais eficaz, isso reduz o risco de a criança ficar definitivamente com macrocefalia, pois apesar de tratar a hidrocefalia, a cirurgia não é capaz de reduzir o tamanho da cabeça após seu crescimento.
O principal sinal da condição é o crescimento da cabeça além do esperado. Essa medição é feita pelo pediatra, por meio de uma medida chamada perímetro encefálico. Infelizmente, em muitos casos, apesar do crescimento da cabeça, só há suspeita de hidrocefalia quando o quadro está avançado.
Fonte: O Globo