Aplicativos (Apps): a maior conquista digital-utilitarista do século para a Saúde

Os aplicativos inteligentes invadem a saúde.

“Seres humanos são mais do que históricos médicos. Cada aspecto da nossa saúde é profundamente influenciado por nossos 5 comportamentos fundamentais diários: sono, alimentação, movimento, gerenciamento de estresse e conexão social. Ao usar o poder da hiperpersonalização, podemos melhorar significativamente esses comportamentos. Estamos construindo um coach de saúde em IA hiperpersonalizado que estará disponível como aplicativo móvel. Ele será treinado na melhor ciência revisada por pares, bem como nas metodologias de mudança comportamental, como os Microsteps, que são pequenos atos diários que cumulativamente levam a hábitos mais saudáveis. Ele também será treinado em dados biométricos pessoais, laboratoriais e outras informações médicas que o usuário escolha compartilhar”.

Esse é um trecho do artigo-anúncio de Sam Altman (CEO da OpenAI) à revista TIME, publicado em 07/07, apresentando o projeto “Thrive AI Health”, uma iniciativa conjunta da OpenAI Startup Fund e da Thrive Global. Talvez seja o mais ousado “App em Saúde” já desenvolvido pela biosfera digital. O projeto não é uma ação altruísta, mas uma iniciativa centrada em um dos maiores mercados de serviços do mundo: a saúde. Nenhuma tecnologia digital foi mais utilitarista (maior benefício em saúde para o maior número possível de pessoas) e pervasiva (se espalha por diferentes camadas e ambientes) para a saúde populacional do que os Aplicativos de Saúde, uma indústria que gerou US$ 3,43 bilhões em 2023 (aumento de 9,9% em relação ao ano anterior). Quem são os potenciais clientes dessa nova geração de healthcare-apps? A resposta é tão ingênua quanto real: 8,3 bilhões de seres humanos, uma legião de pacientes que se engalfinha diariamente nos Sistemas de Saúde (públicos e privados) repletos de insuficiências e entraves.

Os Aplicativos digitais (Apps) já são considerados ‘outro membro’ do corpo humano, uma nova fisiologia digital dentro da imanência humana. Funcionam como um novo olho, perna, braço ou qualquer outro ‘suporte’ que melhore a condição humana em uma vida repleta de obstáculos e problemas. Talvez agora, os aplicativos estejam evoluindo para se tornarem um novo cérebro, um plus-cerebral, ou mesmo uma nova camada neural postiça.

Aplicativos móveis são softwares projetados para propósitos específicos. Em janeiro de 2007, durante a Macworld Conference & Expo (em San Francisco), Steve Jobs subiu ao palco, anunciou o iPhone e afirmou que a Apple estava reinventando a telefonia. Naquela ocasião, o jornal The New York Times estampou na capa: “Apple’s iPhone: A Revolutionary Mobile Phone”. Em março de 2008, a Apple lançou o iPhone SDK (Software Development Kit), permitindo que desenvolvedores criassem aplicativos para o iPhone. Em julho do mesmo ano, a empresa lançou a App Store, uma plataforma para que usuários baixassem aplicativos desenvolvidos por terceiros. Na realidade, Jobs estava reconfigurando o mundo e não só a telefonia. Esse passo possibilitou a “digitalização dos humanos” (personal-digitalization) em vez de informatizar as empresas, como até então a tecnologia computacional havia possibilitado. Todas as áreas humanas adotaram os Apps, incluindo a Saúde.

Em 2023, havia 311 milhões de usuários consumindo aplicativos de saúde (com mais de 379 milhões de downloads). Quase “1 milhão desses apps foram instalados por dia em 2023”, um aumento de 42% em relação a 2019. Os Monitores de Pressão Arterial ou de Saúde Cardiovascular alcançaram um crescimento astronômico de downloads (mais de 500% em 2023, comparado a 2019). Em termos de usuários ativos, o Apple Fitness tem o maior número deles, com 115 milhões (aproximadamente 29% de participação no mercado de fitness-apps), sendo o Apple Watch (smartwatch) o mais popular.

Em termos de ‘uso de aplicativos’ (não só para saúde), o Brasil está no topo da pilha, com pessoas gastando mais de cinco horas ao dia em apps (fonte: data.ai). Já é o quarto maior mercado em termos de downloads e deve ultrapassar os EUA até 2025, ficando atrás apenas da Índia e da China. Em 2023, foram baixados no país cerca de 10,2 bilhões de aplicativos, contra 8 bilhões em 2019. Obviamente, a classe de Apps mais recorrente no país são games e não saúde.

Os Aplicativos de Saúde se juntaram a devices, wearables, sensores, softwares, IoMT, etc., numa fusão onde não se distingui mais onde começa o software ou o hardware. Eles se impuseram em todas as esquinas das Cadeias de Saúde. Na última década, melhoraram muito em design, usabilidade e assertividade, mas continuam longe de poder verticalizar a saudabilidade clínico-assistencial, ou reduzir a carga operacional dos Sistemas de Saúde (a taxa de retenção do ‘aplicativo médio de saúde’ em 2022 foi de 37% no primeiro dia, caindo para 9% no 28º dia). Imagine se ainda tivéssemos que reservar hotéis ligando para a recepção?… essa ainda é a ‘experiência na saúde’ hoje. Apesar disso, todos os serviços médicos do planeta se engajaram na adoção apps.

NHS App (Reino Unido), por exemplo, é utilizado por mais de 34 milhões de indivíduos, sendo uma peça central na estratégia digital do Serviço Nacional de Saúde (NHS). Ele agenda consultas, renova prescrições, disponibiliza ao usuário acesso a seu histórico médico, visualiza laudos de exames, e permite uma comunicação direta entre pacientes e médicos (GPs). Todavia, ainda faltam funcionalidades que abordem diretamente o gerenciamento das filas de espera, o acesso igualitário aos excluídos tecnologicamente, o suporte inteligente às condições crônicas, etc.

Não é diferente no Brasil, que oferece o (1) “Meu SUS Digital” para usuários do sistema público e uma centena de outros apps para os beneficiários da Saúde Suplementar. Some-se a isso que o Estado também oferece o (2) “Meu DigiSUS”, gerando uma confusão de marcas e funcionalidades. O primeiro deveria ser o ‘aplicativo mais abrangente’, ou seja, a principal porta de entrada para os serviços digitais de saúde do SUS. Ele oferece acesso a recursos, como: Carteira de Vacinação Digital, Histórico de Medicamentos, Resultados de Exames, Agendamento de Consultas (em algumas regiões), Acompanhamento da Fila de Transplantes, Informações sobre Doação de Órgãos e Autorização para Retirada de Absorventes (Programa Dignidade Menstrual).

A confusão decorre porque o segundo app (“Meu DigiSUS”) foi criado para atender beneficiários do Bolsa Família, mas atualmente está disponível para todos os cidadãos. Ele também proporciona acesso a itens similares do primeiro App, como: visualizar o Cartão Nacional de Saúde (CNS), acesso ao Histórico de Atendimentos, consulta a Lista de Medicamentos de Uso Contínuo, verificação da Situação do Benefício do Bolsa Família (se aplicável), etc. Talvez o Datasus não ache que isso gera confusão, mas, obviamente, a unificação em um único sistema seria o ideal. Há um esforço para essa centralização, mas o ritmo é lento, tão lento quanto a implantação definitiva da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), uma “cruzada nacional” que se arrasta há anos e poderia resolver com razoável facilidade a unificação e a expansão dos apps-SUS.

A França conta com o Ameli, um app público da Caisse Nationale de l’Assurance Maladie (CNAM), a instituição responsável pela seguro social no país. No Canada, existe um aplicativo (também considerado um “Personal Health Record”) para cada província e território, que têm autonomia para desenvolver suas próprias plataformas digitais em saúde (MyHealthNB, em New Brunswick; MySaskHealthRecord, em Saskatchewan; Alberta Health Services App, em Alberta, Ontario Health, em Ontário, etc.). Todos os serviços digitais do país estão centralizados no Canadá Health Infoway, um hub criado em 2000 e responsável pela integração e promoção de digital health.

Mas há algo em comum entre eles: ‘em breve, todos estarão operando embarcados em Inteligências Generativas. (GenAIs)’. Todas as principais nações (G50) preparam seus ‘sistemas de saúde’ para utilizar as GenAIs em seus aplicativos clinico-assistenciais, introduzindo, entre outras funcionalidades: Triagem Automatizada; Análise de Dados em Saúde (identificação de tendências e padrões conforme o perfil sanitário do paciente); Educação, Letramento e Conscientização (conteúdos personalizados para educação em saúde, orientados para o perfil clínico do paciente); Análise Preditiva (prevenção de surtos epidêmicos); Assistentes Virtuais (chatbots avançados para suportar o autocuidado do paciente); Personalização e Coordenação de Cuidados; Alertas Personalizados; etc.

As projeções mostram que a entrada das aplicações de saúde baseadas em Inteligências Artificiais Generativas pode levar o número de usuários a 1 bilhão até 2040. Ou seja, uma criança nascida hoje terá o seu Assistente Conversacional Pessoal de Saúde (app) quando alcançar os quinze anos de idade.

Uma das matrizes no desenvolvimento de aplicações em saúde chama-se “doctor-on-demand”. Segundo a Statista, o mercado global de consultas médicas on-line em 2024 deve atingir US$ 9,46 bilhões (a penetração de usuários deve chegar a 1,58%, atingindo 1,75% até 2029). Centenas de Apps para ambulatório virtual emergem todos os meses em países com grande contingente populacional. Na Índia, por exemplo, o mercado de Consultas Médicas Online cresce aceleradamente, tentando superar as deficiências de infraestrutura médico-assistencial para sua imensa população. Um único Aplicativo Público de Saúde, o Ayushman Bharat Health Account (ABHA), que permite aos pacientes acessarem seus registros digitais, já conta com 5 milhões de usuários atuantes. Na China, o doctor-on-demand cresce na mesma proporção que sua exponencial inclusão digital.

Nos últimos 12 meses, emergiram mais de uma centena de Assistentes, Agentes, Copilots (chame como quiser) que nada mais são do que “Apps Conversacionais” impelidos pela multimodalidade das GenAIs. Em menos de cinco anos, eles serão a maioria das ‘aplicações em saúde’. Os Assistentes Médicos Conversacionais poderão triplicar o número diário de atendimentos telemédicos ou presenciais em todo o mundo. As aplicações de Suporte a Reabilitação, por exemplo, embarcadas com GenAI, devem reduzir significativamente as readmissões hospitalares e a necessidade de cuidados de longo prazo. No Reino Unido, a Auditoria Nacional de Cuidados Intermediários da NHS (Benchmarking Network), mostrou que ‘93% dos indivíduos que receberam serviços de reabilitação em 2018 melhoraram ou mantiveram a sua independência’. Apesar disso, os serviços de reabilitação enfrentam colossais desafios em quase todos os países, incluindo na Inglaterra. Os cuidadores são cada vez mais raros e dispendiosos. Máquinas e robôs inteligentes devem absorver boa parte da carga de reabilitação nos próximos anos.

Os dispositivos de mobile-apps sempre carregaram três problemas desde a origem: bateria, teclado e segurança. A maioria dos dispositivos alimentados por bateria (smartphones, tablets, gadgets, sensores, devices, veículos elétricos, etc.) dependem da tecnologia de ‘bateria de íons de lítio’, que são capazes de armazenar uma quantidade de energia em um ‘pacote’ pequeno, tornando-se a escolha para boa parte dos dispositivos. Um de seus maiores impedimentos é a sustentabilidade dos materiais usados ​​na sua produção, como cobalto, níquel e magnésio. Novas tecnologias surgiram e estão sendo testadas e até comercializadas, como baterias de lítio-enxofre, de estado-sólido, de íons de lítio sem cobalto, de íons de sódio, de ferro-ar, além das baterias de zinco e grafeno. Todas têm seus prós e contras, mas, em geral, tendem a ser mais eficientes do que as baterias de íons de lítio.

Quanto ao teclado, ele será um acessório dispensável nos próximos anos. A ‘comunicação por voz’ mostra seus primeiros sinais de solidez, deixando claro que os apps-GenAIs Multimodais usarão a voz como eixo na interface entre humanos e máquinas. Já a segurança e a privacidade de dados dos Apps e Devices parecem ser um moto-contínuo: para cada nova tecnologia de segurança desenvolvida, surge uma nova técnica para neutralizá-la, criando um ciclo interminável onde cada avanço obtido é seguido por um avanço corruptivo contra a privacidade. Este equilíbrio dinâmico entre proteção e quebra de segurança não tem fim. A luta continua, mas proteger dados está se tornando cada vez mais uma abstração civilizatória. Nossa privacidade é violada diariamente em todas as instâncias socioeconômicas, das big-techs, passando pelo Estado até chegar à legião de hackers que emerge como praga. Sem falar que é cada vez mais comum os próprios usuários utilizarem informações não-autorizadas dentro das empresas, ou no seio familiar, ou até fuçar arquivos de terceiros próximos. Muitos absorveram o tecido cultural do ‘afinal, é só o meu tipo sanguíneo’, desenvolvendo uma espécie de ‘voyeurismo informacional’ (“se ninguém respeita meus dados privados, porque vou deixar de ver o celular de meus filhos?”). Sem uma estrutura legal de ‘crime inafiançável’ dificilmente esse cenário muda.

Sempre é necessário lembrar que a pandemia propeliu os movimentos em digital health. Os gastos globais com a Covid-19 atingiram US$ 9 trilhões, de acordo com a OMS (mais de 10% do produto interno bruto global). O presencial saiu da “sala de jantar” e deixou o digital ocupar corações e mentes. Essa exposição ao mundo eHealth sempre gera riscos e contradições. Mas, ao mesmo tempo, gera algum alívio. O NHS informa que 43% das 31,9 milhões de consultas virtuais em novembro/2023 ocorreram no mesmo dia em que foram agendadas. Não é diferente no Brasil, ou no Gabão: sem os aplicativos doctor-on-demand, o mundo da saúde entraria em convulsão, tanto na ponta do ‘dono-da-dor’, como na ponta do ‘dono-da-cura’ (espera-se que 1/3 dos médicos de família do Reino Unido deixe a profissão nos próximos cinco anos).

“Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”. Não importa se o app “Thrive AI Health” será a próxima superinteligência a serviço da prática médica. Os Apps Inteligentes de Saúde, similares a ele, vão povoar as enfermarias, os ambulatórios, as residências, estarão no smartphone de cada paciente e até em sua mente. Vamos assistir a um enxame de plataformas generativas em saúde habitando o mesmo espaço de cada doença, cabeça a cabeça, participando de cada alívio, cada regressão tumoral e cada conquista por mais um puxadinho de vida. Os Apps não vão eliminar a morbidade ou a mortalidade humana, mas estarão conosco em todo o percurso existencial. Estarão em nosso habitus desde a mais suave infância até a jornada final. Se não é de companheirismo que precisamos, do que será?

Guilherme S. Hummel – Scientific Coordinator Hospitalar Hub – Head Mentor – EMI (eHealth Mentor Institute) 

Fonte: Saúde Business