Criar vínculos sólidos entre hospitalista e equipe para garantir qualidade assistencial e segurança do paciente em um cenário onde prevalece o multiemprego
Quando trouxemos pelas primeiras vezes o termo hospitalista no Brasil, estava entre os objetivos daquele movimento minimizar algo que era evidente por aqui: o multiemprego. Eu próprio era médico residente e, ao mesmo tempo, fazia plantões em dois hospitais, um na mesma cidade, outro no litoral gaúcho. Essa realidade, que uma vez, com o saudoso Walter Mendes, um dos pioneiros em segurança do paciente, ilustramos como cuidado baseado em plantões, era ainda mais pronunciada entre a maioria dos meus contatos profissionais. Atuação do mesmo médico em quatro ou cinco instituições não era algo incomum e me assustava muito, sob várias perspectivas. Não há como ser suficiente para os pacientes frente à enorme complexidade das organizações hospitalares contemporâneas. Cada uma com um prontuário eletrônico do paciente (PEP) de marca diferente é um exemplo.
Naquelas circunstâncias – Porto Alegre no início dos anos 2000, já estava atento para a necessidade de aprimorar fluxos e processos hospitalares. Percebia que era questão de tempo para uma nova forma de armazenar e trabalhar as informações em saúde, muito além do PEP.
Desenhava-se um cenário onde passaria a ser idealmente necessário conhecermos melhor o local de trabalho, seus sistemas e interfaces, suas rotinas, os atalhos (sempre muito atrelados à identidade institucional, que incorpora a cultura, a história e a filosofia do lugar), considerando a complexidade crescente e a pressão externa por eficiência. Para um verdadeiro trabalho em equipe, as pessoas da organização deveriam estabelecer melhores laços sociais e emocionais.
Duas décadas depois, vejo que hospitais (no sentido mais abrangente possível) perceberam a importância disso. Não estão replicando, em larga escala, estratégias de gestão do corpo clínico e dos processos assistenciais que pressupõem um vínculo mais profundo com os diversos médicos envolvidos no cuidado. Coordenadores, como de UTI’s, querem reuniões com todos os intensivistas, mesmo que os que não estejam na sua escala, no dia e hora pretendidos, trabalhem em outras instituições e já tenham pouco tempo para convívio familiar e lazer.
As gestões da qualidade/de risco gostam de todos os profissionais que fazem parte do caso em encontros cara a cara, nem que seja utilizando ferramentas para comunicação à distância. As equipes institucionais das UTI’s também valorizam o alinhamento em tempo real com os clínicos e cirurgiões assistentes, pactuando verdadeiros planos terapêuticos conjuntos. Há a valorização da comunicação direta. Há os rounds multidisciplinares, os huddles e as reuniões com familiares. É senso comum que quanto mais participação de todas as perspectivas profissionais envolvidas, melhor o resultado: potencialmente as definições terapêuticas ficam mais assertivas, com todos pensando igual sobre o momento de deambular depois de uma cirurgia ortopédica. Com isso, pacientes e familiares tendem a ficar menos confusos. Se interessou? Leia mais sobre o trabalho dos hospitalistas.
O problema é que, no exterior, fizeram isso construindo modelos assistenciais com as “espinhas dorsais” dos hospitais (emergências / PSs, enfermarias e UTI’s) bem-amarradas e organizadas (com intensivistas rotineiros e hospitalistas, por exemplo), bem como construindo pontes sólidas com os especialistas focais. Hoje acontece o seguinte: hospitais querem alianças mais sólidas com especialistas focais, buscando-os ter como consultores disponíveis e eficientes, sem oferecer nada ou muito pouco de diferente de décadas atrás. Muitos de grife insistem no “privilégio de fazer parte do meu corpo clínico” (e só).
Querem, na prática, sobreavisos de graça e que os profissionais sejam remunerados pelas fontes pagadoras terceiras (planos de saúde). Não bastasse culminar em sistemas frágeis, nesse formato estão cada vez mais comuns os atritos entres médicos da “coalisão interna” (como os empregados das UTI’s e PS’s) e especialistas focais, tantas vezes imprescindíveis. Os primeiros, muitas vezes legitimamente preocupados com os pacientes, se esquecem do vínculo distinto dos especialistas focais em hospitais de corpo clínico aberto. Querem exigir desses médicos da “coalisão externa” o mesmo tipo de relação que possuem com o hospital.
Para os da coalisão externa, entretanto, é diferente: convivem com mais incertezas remuneratórias e atividades concorrentes em paralelo. Muitas vezes organizam equipes e escalas sem apoio algum dos hospitais. Os que não fazem isso ou não conseguem precisariam estar disponíveis 24/7, se a expectativa é resposta eficiente a qualquer momento. Este desalinhamento acaba favorecendo atritos e conflitos diversos entre os médicos das coalisões interna e externa, quando modernamente o que se quer é trabalho em equipe e colaboração.
Em relação às estruturas, como UTI’s e PS’s, avança ainda uma pejotização altamente focada em aumentar ganhos de alguns atores do sistema. Eu, como médico da linha de frente, tenho recebido periodicamente mensagens como esta:
“Olá, bom dia! Me chamo Anne e sou gestora de escalas do Grupo XXX. Estou precisando de intensivista/clínico para o próximo final de semana no xxxxxx. Caso tenha interesse!”.
Para um hospital que nunca pisei, de onde não conheço o PEP, desconheço os fluxos de ativação dos sistemas de resposta rápida, e por aí vai. Sendo bem objetivo: não gostaria de familiares meus hospitalizados em lugares assim. Prevalecerá o multiemprego e as fragilidades dos vínculos e, portanto, dos processos. Provavelmente não existirá qualidade assistencial e segurança do paciente além das propagandas institucionais e outras narrativas no Linkedin. Sem ser capaz de transformá-las, nada mais justo do que exaltá-las como parte de uma mensagem e reforçar a própria relevância no mundo. Quem nunca?
Fonte: Saúde Business