A postura ereta dos humanos é um passo evolutivo que intriga ainda muitos estudiosos dos grandes primatas. O fato de caminharmos de forma bípede o tempo todo desafia o desenvolvimento ósseo humano, especialmente na vida adulta, quando o risco de fraturas pode causar danos ósseos e outras condições.
Fatores genéticos podem também ter um papel no aparecimento dessas condições, mas isso era pouco compreendido até então. Agora, uma nova pesquisa revelou que a predisposição genética, aliada a fatores anatômicos, como proporção do tamanho dos ossos, pode antecipar danos ósseos no futuro.
O estudo, publicado na capa da edição da Science desta quinta-feira (20), traz novos dados sobre nosso passado evolutivo e pode auxiliar médicos a preverem melhor os riscos de pacientes desenvolverem condições na vida adulta, como dores nas costas, nos joelhos e artrite.
Usando inteligência artificial para analisar milhares de imagens de raios-X e informações do nosso DNA, pesquisadores da Universidade do Texas em Austin e do Centro Genômico de Nova York identificaram os genes envolvidos no desenvolvimento de nossos esqueletos, desde a largura dos ombros até o tamanho das pernas.
“Nós encontramos que proporções esqueléticas elevadas relacionadas à articulação do joelho [uma maior razão entre comprimento e altura do fêmur, da tíbia e do ângulo tibiofemoral] estavam associadas a uma maior incidência de artrite e dores nos joelhos. Ainda, uma maior proporção da largura do quadril com a altura tinha relação com o risco aumentado de osteoartrite e dores no quadril”, disse Eucharist Kun, pesquisador do departamento de biologia integrativa da Universidade de Texas e primeiro autor do estudo.
Da mesma forma, pessoas com uma maior relação entre a altura do torso e largura do quadril têm maior risco de desenvolver dores nas costas. Isto significa, em geral, que pessoas com essas características podem sofrer dessas doenças no futuro, mas a predisposição genética não é o único fator.
Os humanos são os únicos grandes primatas que têm pernas mais longas que os braços, uma mudança esquelética fundamental para garantir o andar bípede. Mas a análise do registro fóssil somente, dos hominídeos não bípedes até os humanos modernos, não foi suficiente para entender quais as mudanças genéticas por trás dessas diferentes formas anatômicas.
No estudo, os cientistas analisaram 39.172 imagens de raio-X de corpo inteiro de indivíduos com idade de 40 a 80 anos do Biobanco do Reino Unido, um dos maiores repositórios biomédicos. O uso de uma ferramenta de “deep learning” permitiu que os cientistas medissem 14 distâncias entre partes do corpo, como distância entre os ombros, joelhos e tornozelos.
A verdadeira descoberta aconteceu quando os cientistas correlacionaram essas medidas com as sequências genéticas de cada indivíduo, identificando 145 pontos no genoma (alelos, ou as cópias que cada pessoa carrega de um determinado gene) responsáveis por controlar as proporções esqueléticas.
“Nossa pesquisa é uma poderosa demonstração do impacto da inteligência artificial na medicina, especialmente quando se trata de analisar e quantificar dados de imagem, bem como integrar essas informações rapidamente e em grande escala com registros de saúde e genética”, afirma Vagheesh Narasimhan, professor assistente de biologia integrativa e estatística na Universidade de Texas, que liderou o estudo.
Algumas das medidas associadas aos genes podem ser um indicador de aparecimento de doenças musculoesqueléticas no futuro, como artrite do joelho e do quadril —condições que afetam bilhões de pessoas no mundo e são altamente incapacitantes na vida adulta.
“Embora a gente não possa afirmar com certeza que determinada região do DNA corresponde ao risco aumentado de doenças esqueléticas, o que podemos afirmar é que a relação entre medidas específicas do esqueleto [como relação do tamanho do torso com o quadril] podem estar associadas ao desenvolvimento de dores”, avalia Kun.
Essa informação pode ser útil para o diagnóstico e exame médico dos pacientes, completa o cientista. “O exame de rotina das condições ósseas envolve o uso de raio-X. Com nosso método pioneiro de análise das distâncias entre os ossos através da IA, acreditamos que essa pode ser uma ferramenta potencial de auxílio no diagnóstico clínico.”
Além do uso médico, os resultados do trabalho têm implicações para estudos evolutivos. Isso porque os cientistas identificaram áreas no genoma conhecidas como “regiões aceleradas humanas” (human accelerated genomes, em inglês), áreas do DNA conservadas ao longo da evolução dos vertebrados, inclusive dentro do grupo dos primatas, mas que sofreram um número significativo de mutações nos humanos.
“Nosso estudo revelou que as regiões do genoma e os genes associados às proporções esqueléticas são favorecidos em conjunto com essas regiões aceleradas humanas, especialmente aquelas ligadas ao andar bípede”, afirma o pesquisador.
Desde os estudos de Leonardo da Vinci sobre as proporções dos membros e outros elementos do corpo humano, representados na famosa figura do “Homem Vitruviano”, os cientistas buscam entender os fatores evolutivos envolvidos na anatomia humana.
“De certa forma, estamos abordando a mesma pergunta que Da Vinci enfrentou: qual é a forma humana básica e suas proporções? Mas agora dispomos de métodos modernos e também perguntando à ferramenta de IA como essas proporções são determinadas geneticamente.”
Fonte: Folha de S. Paulo