“É tristeza o nome da doença, a pior que tem”, diz Gerson Hein, 48, secando a testa com o antebraço numa manhã ensolarada de inverno. Enquanto segura uma muda verde de fumo, as botas sujas de terra, ele aponta para os cinco bois do outro lado da cerca.
“Eles tão tudo assim felizes pastando, mas tem que estar sempre prestando atenção. Se um se isolar do bando, arriar as orelhas e murchar o rabo, tem alguma coisa de errado.” O agricultor fala dos bichos, mas o assunto é gente: “Dá igual no ser humano, dá e mata”.
Gerson felizmente nunca viu de perto, mas sua propriedade fica numa região onde casos de enforcamento já não chocam mais. A cidade é Venâncio Aires (RS), a uma hora de Porto Alegre, que historicamente tem uma das mais altas taxas de suicídios do Brasil.
Foram nove óbitos e 38 tentativas só nos seis primeiros meses deste ano, sendo agricultores como ele as vítimas mais comuns. O município gaúcho de 72 mil habitantes reflete um país que adoece mentalmente e acumula uma multidão de deprimidos e ansiosos e, consequentemente, de mortos.
O total de óbitos no país por lesões autoprovocadas dobrou de cerca de 7.000 para 14 mil nos últimos 20 anos, segundo o Datasus, sem considerar a subnotificação. Isso equivale a mais de um óbito por hora, superando as mortes em acidentes de moto ou por HIV.
A curva vai na contramão do resto do mundo, mas segue a tendência da América Latina, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), que atribui a piora à pobreza, à desigualdade, à exposição a situações de violência e ausência ou à ineficiência de planos de prevenção.
“Tudo é em forma de tentar sair da vida que a gente leva”, afirma Ana Paula da Silva, 39. Ela conta que tem episódios de automutilação e que tentou tirar a própria vida cinco vezes, relembrando uma infância de ausências: “Às vezes, a gente só tinha o almoço ou a janta”.
Começou a trabalhar aos 14 e se prostituiu nas ruas de Venâncio depois que perdeu o pai, alcoólatra. Também se rendeu à cocaína e à bebida. Hoje, sente-se melhor e tenta recomeçar com as rodas de conversa e a água quentinha do chimarrão de que gosta no Caps (Centro de Atenção Psicossocial).
O Rio Grande do Sul ocupa sempre o topo do ranking brasileiro, por motivos que até o comitê estadual de prevenção do suicídio tem dificuldades de entender. As hipóteses passam pela cultura herdada da colonização alemã: “No Sul, saúde mental é vista como besteira, como se a pessoa não quisesse trabalhar”, diz a coordenadora do comitê, Andréia Volkmer.
No Vale do Rio Pardo, onde fica Venâncio Aires, soma-se ainda o fator econômico de uma região que depende essencialmente do tabaco e, portanto, do clima e da qualidade da safra. Muitas vítimas ali são homens acima dos 50 anos, fumicultores que não se sentem mais produtivos.
Pesquisadores também citam os agrotóxicos organofosforados como desencadeadores da depressão. A cidade, porém, diz que os casos variam muito e põe o fator em segundo plano: “Identificamos muitas pessoas que tinham sofrido violência ou eram violentos, por exemplo”, diz a enfermeira Patrícia Antoni, coordenadora do comitê municipal.
Os motivos são complexos e múltiplos, mas “a palavra mais perigosa que tem é quando a pessoa diz ‘cansei’, aí tem que correr”, afirma o psiquiatra Ricardo Nogueira, docente da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil) e autor de dois livros e de um manual sobre prevenção ao suicídio no estado.
Ele descreve o ato como o ponto final “dos seis Ds”: desesperança, depressão, desemprego, desamor, desamparo e desespero. Prevenir o suicídio é, então, prevenir o sofrimento mental em suas diversas formas. E não são poucas.
O leque de transtornos chega a mais de 300 tipos, segundo a classificação DSM 5, referência internacional criada pela Associação Americana de Psiquiatria. Mas os mais comuns são ansiedade e depressão, problemas que o Brasil conhece bem, como mostram diferentes pesquisas.
Um levantamento da OMS em 2017 apontou o Brasil como o país com o maior índice de ansiosos do mundo (9,3% ou 18 milhões de pessoas) e o terceiro maior em depressivos (5,8% ou 11 milhões), muito próximo dos EUA e da Austrália (5,9%) —a entidade pondera que não se pode falar em ranking, porque são estimativas.
Hoje, porém, esses números já estão longe da realidade. Os efeitos do luto, do medo e do isolamento pela Covid-19 foram explosivos nos últimos dois anos (apesar de o período não ter influenciado de forma significativa nos suicídios, especificamente).
A última pesquisa mais abrangente, da Vital Strategies e da Universidade Federal de Pelotas, mostrou que os que dizem ter sido diagnosticados com depressão subiram de 9,6% antes da pandemia para 13,5% em 2022. A Associação Brasileira de Psiquiatria cita que um quarto da população tem, teve ou terá depressão ao longo da vida.
“Estamos saindo da pandemia de coronavírus e entrando numa pandemia de saúde mental”, diz Nogueira. “No auge da Covid, nós íamos atender os pacientes em casa e eles diziam: ‘doutor, pelo amor de Deus, abram os bares, porque aí pelo menos paramos de beber quando eles fecham’.”
Enquanto os bares fechavam, o mesmo acontecia com serviços de saúde mental, o que reprimiu a demanda e fez os pacientes em crise aumentarem. No Caps da Restinga, extremo sul de Porto Alegre, por exemplo, os 3.000 atendimentos anuais de dependentes químicos viraram 14 mil, incluindo mais mulheres e pessoas de classe média.
Nos últimos meses, a equipe da unidade da Restinga teve que dar atenção especial à aldeia indígena Van-Ká, da etnia Kaingang, a alguns quilômetros dali. Um de seus líderes, Eli Fidelis, 51, suicidou-se depois de anos em uma depressão profunda.
“Aqui a gente faz nossas festas. Menos velório, que não é para acontecer mais”, diz Nerlei, 38, o caçula dos oito irmãos, indicando um espaço coberto e circular. “Um tempo atrás a gente nem sabia o que era depressão”, afirma outro irmão, o cacique Odirlei, 40.
Eli é um exemplo de uma parcela da população que carrega o triplo da taxa de suicídios brasileira, diretamente relacionada, entre outros fatores, ao alcoolismo. O fenômeno não é generalizado, mas localizado em comunidades e etnias específicas e concentrado nos adolescentes, segundo o Ministério da Saúde.
Outros estratos que acendem alertas são policiais e pessoas LGBTQIA+. As chances de um jovem desse segundo grupo ter um transtorno mental é três vezes maior para ansiedade, duas vezes para depressão e cinco vezes para estresse pós-traumático, mostrou um estudo feito em escolas de São Paulo e Porto Alegre em 2019.
Os adolescentes e jovens-adultos em geral são, agora, a maior preocupação no país e no mundo, com índices de mortes autoprovocadas disparando acima da média.
A organização bate na tecla de que o suicídio é prevenível, recomendando quatro diretrizes principais aos países: dificultar o acesso aos principais métodos utilizados; qualificar o trabalho da mídia para que neutralize relatos e enfatize histórias de superação; expandir e fortalecer os serviços de saúde mental, capacitando profissionais para identificar casos precoces; trabalhar habilidades socioemocionais nos espaços de ensino.
Fonte: Folha de São Paulo